Entrevista com o Autor


Dr. Geraldo Frazăo de Aquino Júnior
em 03/02/2012

Contratos Eletrônicos - A Boa-Fé Objetiva e a Autonomia da Vontade

Capa do livro: Contratos Eletrônicos - A Boa-Fé Objetiva e a Autonomia da Vontade, Mara Suely Oliveira e Silva Maran

 

1. Como surgiu a ideia de escrever sobre o princípio da boa-fé objetiva nos contratos eletrônicos?
R:
A ideia surgiu a partir da observação do avassalador desenvolvimento das relações negociais travadas na internet. Nesse ambiente, as clássicas fronteiras físicas que delimitavam o atuar humano dissiparam-se: fornecedor e consumidor travam relações alicerçadas em redes nas quais transitam bits de informação, carregando com eles os dados capazes de levar a cabo transações comerciais. Por meio de mecanismos de informática, relativizam-se os endereços físicos, que passam a ser substituídos por endereços eletrônicos que indicam lugares virtuais. As lojas virtuais nada mais são do que softwares instalados em computadores-servidores. Os agentes econômicos não possuem mais lugares físicos para a prestação de serviços: podem estar alocados fisicamente em qualquer recanto do planeta e, virtualmente, em um endereço eletrônico.
    As novas tecnologias, fluidas, velozes e ubíquas, impõem desafios relevantes ao direito, mormente em razão da massificação dos negócios jurídicos de consumo à distância via internet. Para estar à altura desses desafios e propiciar a necessária eficácia dos instrumentos jurídicos, é necessário adaptar o direito do consumidor aos novos paradigmas engendrados pela comunicação e pela informação, características da sociedade atual, visando amparar o elo mais fraco da relação de consumo, socorrendo-o em sua vulnerabilidade.

2. No início de sua obra o senhor expõe com muita clareza a evolução histórica do conceito de boa-fé. No movimento de constitucionalização do princípios contratuais, qual seria a atual concepção de boa-fé objetiva?
R:
A Constituição erige como princípio fundamental a tutela da dignidade da pessoa humana, evidenciando a supremacia dos valores existenciais frente aos patrimoniais, o que constitui, em seu cerne, a antítese da tábua de valores que irradiava da codificação liberal. Nessa nova configuração, o legislador do Código de Defesa do Consumidor, primeiro diploma pós-Constituição de 1988 a fazer referência expressa à boa-fé objetiva, lastreou sua decisão de positivar esse princípio tendo em conta o alicerce cimentado pela Constituição, baseado no tripé dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade substancial. Esses valores evidenciam a intenção do legislador constitucional de romper com a lógica produtivista e patrimonialista e fazer incidir esse novo leque axiológico sobre todas as relações de direito.
    Tendo em conta o processo de constitucionalização do direito civil e o fato de a Constituição ser o centro unificador do direito, cabe ao intérprete o dever de harmonizar teleologicamente eventuais tensões levando em consideração a supremacia e a unidade da Constituição. Os princípios fundamentais nela expressos presidem a interpretação e a aplicação das normas infraconstitucionais, de modo que o contido na legislação ordinária esteja em conformidade com os valores insertos no texto constitucional.
    Nessa esteira, a boa-fé não se confunde com um simples dever genérico de correção e lealdade, mas possui conteúdo normativo estabelecido em consonância com os princípios do ordenamento jurídico hauridos da Constituição Federal. Na seara consumerista, exsurge com maior preponderância o princípio da proteção do consumidor, que encontra sustentáculo na solidariedade e na justiça social. No panorama da constitucionalização do direito civil, verifica-se a funcionalização do princípio da boa-fé expresso no CDC aos princípios constitucionais, revigorando o instituto de modo a torná-lo compatível às demandas sociais e econômicas da sociedade. Esse foi o mecanismo utilizado pelo legislador para oferecer maior flexibilidade ao sistema de modo a atingir a integração do ordenamento jurídico com os mais diversos substratos que formam a coletividade.

3. Em um ambiente eletrônico, o dever de informação clara e precisa dos fornecedores deve ser exigido de forma mais rigorosa?
R:
O Código de Defesa do Consumidor tem por uma de suas finalidades reequilibrar as relações de consumo, harmonizando e dando maior transparência a essas relações. Regula, dessa maneira, alguns aspectos da formação do contrato, impondo deveres ao fornecedor e assegurando direitos ao consumidor. Destacam-se, nessa seara, os deveres de transparência (art. 4º, caput, CDC) e de informação (art. 6º, III, CDC), que, por estarem intimamente ligados ao dever de boa-fé, conforme mais adiante explicitado, serão analisados mais detidamente.
    Na era da informação digital, mais relevante se torna para o consumidor eletrônico a importância do esclarecimento acerca dos dados contidos nos sites dedicados à comercialização de produtos e serviços. Produtos que antes eram vistos materialmente e tocados para serem escolhidos e serviços que eram contratados fitando os olhos do prestador são, agora, escolhidos com base em informações que são, por natureza, desmaterializadas. A própria informação, por sua vez, tornou-se objeto de comercialização. Também na rede, a informação adequada – pressuposto ao direito de autodeterminação – é elemento imprescindível para que o consumidor eletrônico possa exercer seu livre arbítrio e escolher conscientemente os produtos e serviços que lhe são oferecidos. A cognoscibilidade proporcionada pela devida informação permitirá ao consumidor autodeterminar-se, escolhendo os riscos que entende justificados e evitando outros, porém sempre a par do estado da arte da ciência sobre aquele assunto: a escolha está nas mãos do consumidor bem informado.

4. Em sua opinião, os consumidores estão mais vulneráveis nas contratações eletrônicas?
R:
No que concerne ao comércio eletrônico, a internet possibilita uma ampliação do leque de sujeitos com os quais é possível interagir e do arsenal de produtos e serviços disponíveis para a escolha do consumidor. Nesse ambiente, a vulnerabilidade do consumidor não apenas se mantém, mas aprofunda-se. No espaço virtual, continuam existindo grandes diferenças econômicas entre fornecedores e consumidores, razão pela qual as normas de proteção delineadas para proteger o consumidor no mundo real também são aplicáveis no mundo virtual, tendo em vista que a finalidade de neutralizar essa diferença deve coexistir nos dois ambientes.
    No meio virtual, as informações relativas ao bem ou serviço adquirido também impõem uma vulnerabilidade especial ao consumidor, mormente quando o objeto da prestação é a própria informação. Devido à sua intangibilidade, esse produto constitui um verdadeiro desafio para o consumidor, pois este tem dificuldades em entendê-lo em sua completude.
    Essa dificuldade de entendimento também se estende para o próprio ambiente tecnológico. O consumidor opera em um meio que não é o seu natural e, por conseguinte, não consegue compreender todos os meandros do espaço que o envolve. Essa nova realidade apresenta particularidades com as quais não está afeito e a complexidade da tecnologia o envolve como numa teia, ocultando-lhe aspectos que só permanecem visíveis na esfera de controle do fornecedor.
    Daí, são aplicáveis ao espaço virtual as normas que resguardam a segurança e a privacidade do usuário, inclusive as regras da legislação consumerista, mas, nesse espaço, há a necessidade de um manto protetor mais robusto de modo a compensar a vulnerabilidade especial do consumidor no comércio eletrônico
.

5. Além da exposição teórica, sua obra ainda aborda o entendimento jurisprudencial sobre o tema. Em sua opinião, os tribunais pátrios estão atentos à nova realidade dos contratos eletrônicos?
R: Dos julgados analisados na obra, deflui que os tribunais estão utilizando o princípio da boa-fé objetiva como cânone hermenêutico-integrativo limitador da autonomia da vontade, reinterpretando as cláusulas contratuais para que se adaptem à nova realidade contratual, distanciada do individualismo liberal. Relativiza-se a imperatividade do pacta sunt servanda e evidencia-se a conduta, dever jurídico imposto às partes. Decisões acerca dos contratos eletrônicos são escassas, mas, quando de lides no mundo virtual, os tribunais têm utilizado os mesmos parâmetros hermenêuticos aplicados aos contratos no mundo real, razão pela qual se pode concluir pela aplicabilidade da boa-fé objetiva a essas avenças.
    Uma limitação encontrada nos julgados diz respeito ao fato de a maior parte das lides serem levadas a termo no âmbito dos tribunais estaduais. Tal constatação deve-se à Súmula n.º 454, do STF, que estabelece que “simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a recurso extraordinário”, e à Súmula n.º 5, do STJ, que reza que “a simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”. Ademais, ofensa indireta à Constituição não é suficiente para viabilizar recurso extraordinário (veja-se, por exemplo, o AI 664.701/RJ ), não cabendo, também, recurso extraordinário ou especial para simples reexame de prova (Súmula n.º 279, do STF e Súmula n.º 7, do STJ). A análise, nesses casos, deve ater-se ao plano fático.
    É de se registrar que a interpretação de cláusulas contratuais não deveria ser subtraída dos tribunais superiores, pois, eventualmente, podem-se configurar questões de direito que, tendo em vista as citadas súmulas, terminaria por impedir que o contratante prejudicado devolvesse a matéria aos órgãos jurisdicionais superiores, gerando um entrave na uniformização da jurisprudência sobre o tema. Gize-se, contudo, que o STJ tem proferido decisões, como as aqui elencadas, utilizando-se do paradigma da boa-fé objetiva (mesmo que, em alguns casos, por via oblíqua), escopo que se tem ampliado a despeito da Súmula n.º 5. Essas decisões embasam-se, preponderantemente, na ofensa aos fundamentos principiológicos do Código de Defesa do Consumidor, sobressaindo-se a afronta à boa-fé e à confiança nas expectativas legítimas que devem perpassar as relações jurídicas.
    A par dos julgados expostos, e de outros tantos que se podem encontrar na jurisprudência, nota-se que, não obstante o arraigado apego ao tecnicismo positivista quando da interpretação das normas, a aplicação da boa-fé, em seu aspecto objetivo, vem sendo utilizada com menos parcimônia. Parece que os magistrados não estão se furtando a utilizar todo o manancial de valores que a boa-fé traz em seu bojo, em especial como meio de tornar as decisões mais justas. Sua aplicação não traz insegurança ao ordenamento jurídico por ter conteúdo abstrato, não aferível concretamente. Impõe-se, pois, ao jurista, o dever de aprofundar o estudo dos institutos jurídicos, tarefa indissociável do concomitante acompanhamento da evolução social.

 

Geraldo Frazão de Aquino Júnior é Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; Mestre em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP); Especialista em Direito Público pelo ATF Cursos Jurídicos/Faculdade Maurício Nassau; graduado em Direito e em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Ex-Professor de Direito Administrativo do ATF Cursos Jurídicos. Servidor Público Federal.