Entrevista com o Autor


Javier Rodrigo Maidana
em 11/12/2013

"As operações de paz das Nações Unidas estão presentes no cotidiano dos Estados, compondo uma força internacional para promover e garantir a estabilização de regiões conflituosas por meios pacíficos, com a anuência das partes envolvidas. Acompanhando, entretanto, as notícias e alguns resultados do desempenho das citadas missões, põe-se a dúvida da efetividade delas. Em outras palavras, quais são os problemas que se impõem ao instituto na tentativa de lograr aquilo que se dispõe a realizar? Ele apresenta uma estruturação para isso? O que define uma operação de paz e a diferencia de outras ações da ONU? O que lhes  dá  legitimidade  para  serem  praticadas  pela  organização  sem  desrespeitar o Direito Internacional?" (Trecho extraído da introdução do livro: Operações de Paz das Nações Unidas Atuação Eficaz ou Falácias? - Reflexões Acerca de sua Institucionalização - Javier Rodrigo Maidana.)

 

1. O ramo de pesquisa com relação às operações de paz, em sua obra, evidenciou que é uma área onde há muitos conceitos que não tem uma definição precisa ou por vezes se confundem com outros conceitos, como por exemplo, missões de paz e manutenção da paz. Isto foi um obstáculo para sua pesquisa? O senhor considera que essa amplitude nos conceitos deve-se ao fato deste instituto jurídico ser recente?

R: A compreensão dos conceitos pertencentes ao universo das operações de paz foi realmente um obstáculo inicial. Localizar cada conceito dentro das definições da própria Organização das Nações Unidas (ONU) e diferenciá-los de outros institutos parecidos requereu muita leitura. Outros fatores dificultaram: como o uso do termo peacekeeping para mais de um significado quando traduzido; autores da área alegarem que alguns conceitos não precisam ser diferenciados, visto que “na prática” eles se mesclam, entre outros detalhes. Essa problemática gerou um artigo de minha autoria citado no livro em que trabalho melhor esse ponto além de evidenciar algumas consequências ao não se adotar o termo correto.

No entanto, a amplitude desses conceitos, em minha opinião, não decorre do instituto ser recente, afinal suas atividades iniciaram já na década de 1940. Decorreria, sim, das adaptações do instituto jurídico às novas realidades por ele enfrentadas em campo. Adaptar-se a elas, requer um aprimoramento e uma melhor adequação do instituto sem que se perca de vista os princípios e o fim a que se destina, manter um processo de paz.

 

2. Em sua obra, na página 81, o doutor determina a tríade para a formação das missões de paz: Princípio do Consenso, Princípio da Imparcialidade e Princípio da não utilização da força armada, salvo em legítima defesa ou mandato. Na descrição do Princípio da Imparcialidade o doutor afirma que há uma nebulosidade na diferenciação entre imparcialidade e neutralidade.
Com base nestas afirmações, o doutor acredita que essa falta de definição objetiva é um obstáculo para o maior sucesso das operações de paz?

R: Acredito que não “é”, mas “foi” um obstáculo. Menciono no texto a confusão inicial pelos membros das operações com os conceitos de “imparcialidade” e “neutralidade” a qual se mostrou nociva às atividades e ao papel em campo do instituto. Com o aumento da complexidade de suas atividades isso ficou bem evidente. Na obra, demonstro o fato da ONU atentar-se para essa questão, principalmente, após o episódio de Ruanda na década de 1990. Ela reavaliou o que se deve entender por “imparcialidade”, diferenciando-a bem do que se deve compreender por “neutralidade”. Pelos documentos disponíveis e citados na obra, já se pode mencionar que a diferenciação entre “imparcialidade” e “neutralidade” já foi um obstáculo.

 

3. Como o doutor avalia a atuação do Brasil nas operações de paz?

R: O Brasil, em geral, não tem participado com grandes contingentes em muitas operações de paz. Normalmente envia alguns oficiais de alto escalão e conhecimento para auxiliar em uma operação já em curso. A operação de que mais tenho conhecimento e da qual o Brasil tem protagonismo é a missão no Haiti (MINUSTAH). Lá, as tropas brasileiras vêm apresentando resultados visíveis ainda que careça muito para alcançar o ideal proposto pela Resolução 1542 do Conselho de Segurança.

Outro fator que me foi mencionado em entrevistas informais realizadas após o lançamento do livro, é que o Brasil não tem condições de participar, ao mesmo tempo, de outra operação de paz de igual porte que a do Haiti. Isso limita a ação brasileira e a consolidação do país como um Estado pronto para assumir responsabilidades num almejado assento no Conselho de Segurança. Fatores estruturais, orçamentários, políticos e de equipamento também foram levantados como dificuldades a serem ultrapassadas, caso o país queira participar com uma presença considerável em futuros episódios.

Não obstante, é inegável mencionar que o Brasil, nas operações em que participa, vem ganhando destaque e reconhecimento pela própria ONU. A indicação direta da organização pelo General Carlos Alberto dos Santos Cruz para comandar ações diretas na missão na República Democrática do Congo (MONUSCO) via uma “brigada de intervenção”, caso ímpar dentro das operações de paz, consolida essa afirmação. Entretanto não somente isso. Em conversas com membros do exército atuantes nesse campo, há um evidente interesse de outros exércitos nacionais em saber qual o diferencial das tropas brasileiras em atividades exercidas em outras ou até dentro da mesma operação, mas que apresentam resultados diferentes de outros contingentes. O relacionamento em campo do batalhão brasileiro com outras tropas da operação, com a população local, com outras entidades, a forma de lidar com as situações em campo, já são destaque e um diferencial reconhecido das tropas brasileiras.

Também vale mencionar que a preparação das tropas, desde a base até o topo hierárquico do comando, é levada com muito profissionalismo pelo Brasil. Todo o seu processo preparatório igualmente é destaque, visto que não são todos os países que contribuem com tropas para as operações de paz, que as enviam bem treinadas para realizar as tarefas de campo.

Portanto, conquanto haja ainda fatores a aperfeiçoar, o Brasil tem se demonstrado confiável em suas ações, tendo já alguns reconhecimentos referentes as suas ações principalmente na MINUSTAH.

 

4. Uma operação de paz tem como um dos objetivos a proteção dos direitos humanos, contudo, a imprensa noticiou alguns casos de violações desta categoria de direitos pelos capacetes azuis, principalmente no envolvimento com abuso sexual. O doutor acredita que isso abala a reputação e o sucesso da operação de paz?

R: Sem dúvidas, casos lamentáveis como esses prejudicam a reputação e a imagem da missão em todos os graus: das tropas atuantes no local, do país que cedeu aquela tropa, da operação como um todo, das Nações Unidas, até da Comunidade internacional em última instância. Afinal, lança-se uma operação de paz do seio de uma organização mundial no intuito de preservar e promover uma reconciliação entre partes conflitantes e salvaguardar a população civil. Ocorrências como essas partindo da própria presença internacional, além de comprometer o sucesso da missão, minam um dos fatores importantes para o seu bom andamento: a confiança da população local na operação de paz.

O trabalho das tropas da operação a fim de ganhar a confiança da comunidade local se dá desde os seus primeiros momentos em solo, senão antes. Esse fator é fundamental para o seu cotidiano, visto que auxilia a angariar informações privilegiadas, preparar ações efetivas e pontuais, ganhar legitimidade frente à população local, ter o controle de grupos, facilitar o processo de paz, conhecer melhor a região.

Porquanto, a ocorrência desses fatos pode desestabilizar, em muito, o processo de paz, pois não é difícil encontrar grupos locais que se aproveitam desses episódios para mobilizar ações de expulsão e repúdio à operação, taxando-a como ocupação ou invasão. É uma função delicada, pois até mesmo sem escândalos a operação pode perder o prestígio. Isso ocorre, por exemplo, caso a população crie expectativas irreais pela operação e, vendo que elas não se concretizam, passam a desdenhá-la e não colaborar mais. A relação com a comunidade é fator precioso.

Assim, a questão de abuso sexual é altamente nociva e de difícil controle, já que os contingentes vêm de países com inúmeros contextos, com culturas próprias e visões divergentes sobre a operação, sendo que uns vão comprometidos para auxiliar no processo de paz, outros nem tanto. Nesses casos, em última instância a ONU fica a mercê do comportamento individual dos que formam as suas tropas, em que pese todo o controle que promove para evitar essas ocorrências até então. Depois do fato consumado, não há muito o que se fazer.

 

5. Em sua opinião, a operação de paz do Haiti é efetivamente uma ajuda aos haitianos ou tem um cunho de interferência americana, no intuito de explorar o país?

R: Dizer que a operação no Haiti é isenta de interesses outros que apenas a promoção do processo de paz no país caribenho seria leviano de minha parte. Isso inclusive da parte do Brasil cuja aposta no Haiti teve muito mais do que o auxílio a uma nação amiga. Porém, essas intenções não precisam ser necessariamente nocivas.

No caso da interferência americana, a meu ver, não se concretiza tanto no sentido clássico de exploração e ocupação, visto que o interesse e a participação do Estado americano na operação beira ao mínimo.

Que existem reflexos para os Estado Unidos uma estabilização no país caribenho não há dúvidas, pois o fluxo migratório para Miami e região de haitianos clandestinos é notável. De igual forma pelo fato do Haiti ter, por mais paradoxo que pareça, resorts de alto nível em sua costa aproveitado pelo turismo movimentando outras áreas da economia. A questão do medo pelo terrorismo internacional também poderia ser especulado como promotor do interesse americano pela reestruturação do país a fim de evitar que se transforme numa plataforma para ataques de grupos terroristas.

No que tange a noção de “explorar o país” de maneira predatória ou ocupacional, já não creio muito. Isso por alguns fatores: o Haiti, infelizmente, não possui mais riquezas naturais para uma extração de grande escala e lucrativa; devido ao mau uso da terra, há áreas imensas de solos que perderam a capacidade de plantio, ficando estéreis para qualquer cultivo; para se abrir uma empresa no país caribenho, a legislação nacional se torna um verdadeiro entrave com regras rígidas inclusive para se comprar terreno em solo haitiano; a sua infraestrutura interna ainda é muito deficitária para dar um suporte a um empreendimento seguro, sendo essa responsabilidade do governo haitiano e não da MINUSTAH. Esses seriam alguns dos motivos pelos quais não vejo um interesse de interferência americana para uma exploração do país caribenho. Afinal os Estados Unidos tem de lidar com interesses mais urgentes em outras partes do globo.

Vale lembrar que o quadro muda a se ver a situação pela perspectiva do Haiti. Como ele se encontra, o país precisa e precisará ainda por um tempo do apoio internacional para se estruturar por completo e andar por conta própria.

 

6. Realizando uma análise crítica sobre a operação de paz no Haiti, quais as falhas e os acertos que o Dr. pode apontar?

R: Essas análises se encontram bem trabalhadas no livro, portanto me limito a mencionar apenas alguns pontos. Da parte das falhas, faço referencia ao episódio da transmissão de Cólera por parte das tropas do Nepal que compõem a MINUSTAH. Por mais que o país não ofereça a infraestrutura adequada, o descuido da missão afeta o processo de paz e criou um problema a mais e grave a ser contido. Outro caso seria a formação da Polícia Nacional Haitiana (PNH), fundamental para que ocorra a desmobilização da operação que, por mais que se tenha formado algumas turmas, ainda é questionado a sua qualidade e o quão confiável são, principalmente no tratamento e relacionamento com os próprios civis.

De acertos pode se falar das eleições de 2006 e a de 2010. Em que pese críticas a primeira fase das eleições de 2010 se fazerem presentes, teve-se, pela primeira vez na história do país caribenho, uma eleição tranquila em 2006 e a passagem do poder para um governo de oposição em 2010. Outro fator seria a segurança restabelecida nas áreas mais críticas de Porto Príncipe, com uma redução drástica dos índices de violência. Por fim, vale rapidamente lembrar-se da reação rápida das tropas após o terremoto de 2010 a qual evitou convulsões populares maiores.

 

7. É possível uma operação de paz sem violência?

Nesse caso, se entender “sem violência” como “sem uso da força” a resposta é positiva.

Dentro do espectro de ações das operações de paz, há exemplos de atuações voltadas para o campo político em que ela se encarrega de auxiliar no processo de paz apenas como mediadora, como foi o caso da missão em El Salvador (ONUSAL 1991-1994), por exemplo. Também as operações tradicionais em que impera apenas a observação dos acordos de paz como a missão relâmpago de supervisão na Síria em 2012 (UNSMIS).

No geral, as operações dependerão de alguns critérios para fazer uso da força, como a situação em campo e o tipo de resolução aprovada pelo Conselho de Segurança, se sob o Capítulo VI ou Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.

O que vale mencionar é que nem todas as situações proporcionam o lançamento de uma operação nessas condições pacíficas. Igualmente se pode dizer que, pela prática, há processos de paz que somente se concretizaram com o uso da força pela operação em algum grau. Decerto que esse uso da força segue alguns princípios como, por exemplo, o uso pontual e controlado desta. Nem todos os casos em que a força foi usada foram bem sucedidos, todavia há casos que mostram resultados reais e significantes para o processo como um todo. A própria ação da MINUSTAH e da “brigada de intervenção” da MONUSCO contribuem para esse elenco positivo.

Ainda adotando o termo “sem violência” como “sem uso da força”, outro equivoco, a meu ver, é criar a falsa noção de que, por ser uma operação intitulada como operação de “paz” seria um contra-senso a missão fazer uso de qualquer tipo de força. Deve-se sempre fazer uma avaliação prévia da situação de maneira consistente e averiguar a viabilidade ou até a necessidade do emprego mais incisivo da força por parte da missão, ou seja, se seu uso será mais benéfico ao contexto ou não. O Brasil aprendeu essa lição ao assumir a liderança da MINUSTAH, caracterizada predominantemente como uma operação de imposição de paz, ou seja, com uma liberdade maior de uso da força.

Sempre deve se ter em mente, porém, a finalidade das operações de paz: não quer se promover uma guerra. O uso da força é para favorecer uma estabilização da região com ações pontuais. Caso se ultrapasse esse tênue limiar entre uso da força em prol do processo de paz para uma guerra generalizada, então não há que se falar em operações de paz e sim em outros meios de ação internacional, próprios para o contexto bélico. A ONU já entendeu que não adianta lançar uma operação de paz em um local em que não há paz para se manter.


Javier Rodrigo Maidana é Mestre em Direito, na área de concentração em Direito e Relações Internacionais, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. Graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisador pelo Grupo de Pesquisa em Direito Internacional Ius Gentium do Programa de Pós-Graduação em Direito UFSC/CNPq.