Entrevista com o Autor


Marcelo Miranda
em 07/03/2014

A Cibernética tem sido aceita como uma ciência apta a  propiciar  o entendimento das  teorias  de  funcionamento  tanto  das  máquinas,  quanto do comportamento  dos seres  humanos  e  das  sociedades. Isso ocorre devido à relação indissociável que existe entre comunicação econtrole. (p.35 - Administração Tributária Cibernética - O Interesse Público e o Princípio da Eficiência como Critérios de Legitimidade - Marcelo Miranda)

1. Em sua opinião, há leis que disciplinam a Sociedade da Informação?

A expressão “sociedade da informação” reflete a necessidade de se explicar o conjunto de transformações sociais que ocorrem desde os fins do século passado, na base das quais estão as tecnologias da informação que introduziram significativas mudanças nos padrões de produção, trabalho e consumo. As recentes tecnologias da informação impuseram novas formas de interatividade social, trabalho, comunicação e, por conseguinte, engendraram mudanças culturais e sociais com repercussões em todas as atividades humanas, inclusive no Direito. O que se percebe, porém, é que há uma crescente defasagem entre a rapidez do progresso técnico-científico e a lentidão com que se amadurece a capacidade de controle dos processos sociais que o acompanham, vale dizer, percebe-se uma rápida obsolescência das soluções jurídicas para os novos conflitos que se manifestam. Desse modo, não há leis que disciplinam a Sociedade da Informação, reflexo do desenvolvimento tecnológico, mas é indubitável que ela influencia sobremaneira o Direito, às voltas, agora, com a necessidade de regular, de modo mais dinâmico, uma nova realidade social. 

2. Como atua na atualidade o Poder de Controle de Foucault?

A “sociedade de controle”, teoria elaborada por Michel Foucault, diz respeito ao surgimento de uma nova mecânica do poder ocorrida no século XVIII - o poder disciplinar. Este se exerce continuamente pela vigilância. As construções não são mais feitas somente para serem vistas ou para prevenir-se das ameaças vindas do espaço exterior, mas, principalmente, para possibilitar a visibilidade dos que nela se encontram. Porém, para Gilles Deleuze, com o surgimento das novas tecnologias da informação o “poder disciplinar” foi substituído pelo “poder de controle”. Com as novas ferramentas criadas houve o desenvolvimento de novas técnicas de poder, o ato de vigiar desprendeu os vigilantes de sua localidade e os transportou ao ciberespaço. A sociedade disciplinar, marcada pelo “vigiar” e “punir”, foi substituída por um novo tipo de sociedade marcada pelo “monitorar, registrar e reconhecer”. Nesta nova sociedade, a monitoração eletrônica pode ser reconhecida como um desenvolvimento tecnológico da antiga vigilância hierárquica, mas o poder punitivo não mais se manifesta por meio de uma sanção normalizadora, mas por um intricado sistema de registro e reconhecimento. 

Na Administração tributária contemporânea ocorre o mesmo fenômeno, com o intenso cruzamento de dados para o cálculo de índices de desconfiança de operações fiscais ou para se monitorar “operações fora do padrão”, como ocorre na “malha fiscal”, que nada mais é do que uma classificação do contribuinte em função de parâmetros previamente estabelecidos pelo Fisco. Enfim, a utilização intensa desses sistemas de controle pelas Administrações Tributárias coloca o contribuinte sob uma contínua vigilância tributária, alargando as possibilidades de violação à privacidade dos cidadãos. Nasce, então, sob a ótica do poder de controle de Foucault e Deleuze, o denominado “Estado fiscal vigilante”, isto é, aquele que atinge um nível máximo de controle sobre as atividades econômicas do indivíduo com um mínimo de esforço, induzindo no sujeito uma sensação de permanente visibilidade.  

3. Como os atuais meios eletrônicos influenciam na Administração Tributária? 

Para se ter uma rápida ideia da complexidade tributária trazida pelo avanço tecnológico, há que se observar que os contribuintes têm, atualmente, a responsabilidade de apurar o montante a ser pago de diversos tributos e fornecer ao Estado uma enorme quantidade de informações, mediante a apresentação de intrincadas declarações fiscais, tais como a Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF), Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ), Declaração do Imposto de Renda Retido na Fonte (DIRF), Demonstrativo de Apuração de Contribuições Sociais (DACON), Declaração de Informações sobre Atividades Imobiliárias (DIMOB), Declaração sobre Operações Imobiliárias (DOI), etc. Na prática, o que se realiza é uma verdadeira transferência de custos e responsabilidades das atividades de gestão tributária para o contribuinte. Entretanto, o controle tributário eletrônico não se resume a tais declarações, haja vista o desenvolvimento de complexos sistemas de fiscalização das atividades dos contribuintes, entre as quais pode-se citar, exemplificadamente, o Sistema Público de Escrituração Fiscal (Sped), a Nota Fiscal eletrônica e o sistema de controle de bebidas (Sicobe). A consequência é que além de custos mais elevados para a gestão tributária e dos riscos envolvidos por eventuais erros cometidos na transmissão de informações ao Fisco, os sujeitos passivos estão submetidos a uma fiscalização em tempo integral pelo órgão fazendário. É, justamente, essa situação que remete ao tema central de estudo: o princípio da eficiência legitima a atuação do Estado Fiscal Vigilante; o interesse público na arrecadação de tributos relativiza o direito fundamental à privacidade?

4. O que é a Administração Tributária Cibernética?

A Administração tributária cibernética é aquela que trabalha cruzando as informações prestadas pelos contribuintes, e por diversas outras entidades, com auxílio de complexos sistemas de processamento. Tudo nela se automatiza, tudo se transforma em bit, até as notas fiscais em papel se tornam coisa do passado. No fisco cibernético, o principal insumo é a informação digital, que possibilita a tríade de operações da sociedade de controle: monitorar, registrar e reconhecer. Em outros termos, o Fisco informacional coleta informações, as armazenam em bancos de dados e avalia a sua corretude, seja comparando-as aos registros históricos, seja confrontando-as com informações prestadas pelo próprio contribuinte em outras declarações, seja cruzando-as com registros oferecidos por terceiros (administradoras de cartões de créditos; hospitais e serviços médicos, em relação aos gastos com saúde; imobiliárias, em relação às operações imobiliárias por elas intermediadas, e assim por diante). Em função disso, seu poder está menos visível e mais difuso. Sua invisibilidade torna o Fisco mais efetivo e menos custoso. 

5. O princípio da eficiência é critério legitimador do Estado Fiscal Vigilante?

Com a revolução tecnológica, como já dito, o poder e a eficiência das Administrações tributárias se ampliaram enormemente. Porém, os ganhos de produtividade não foram repassados aos cidadãos sob a forma de menor tributação e maior simplicidade do sistema tributário. Em função disso, entende-se que não se pode admitir que os controles eletrônicos sejam atribuídos aos contribuintes, visando-se tão somente o aumento da eficiência arrecadatória. Os benefícios trazidos pela evolução tecnológica devem repercutir também na esfera dos cidadãos. Em matéria tributária, aliás, nota-se um grande equívoco no que concerne à ideia de eficiência, que consiste em confundi-la com a eficiência unicamente arrecadatória. A eficiência tributária só se perfaz se houver a correta utilização dos tributos arrecadados a bem da comunidade, a justiça da tributação pela distribuição equitativa do ônus tributário entre todos os membros da sociedade e o eficaz combate à sonegação fiscal. Portanto, a correta percepção do princípio da eficiência em matéria tributária exige que se considere o objetivo essencial do Estado que é a realização do bem comum, porque a tributação é tão somente um meio de se concretizá-lo. Consequentemente, o princípio da eficiência só será um critério de legitimação do Estado Fiscal Vigilante se ele se der nesta perspectiva mais abrangente. 

6. Como ponderar o direito fundamental à privacidade e interesse público de tributar na atual “Sociedade Panóptica”?

O poder de sujeitar não pode se apoiar unicamente no interesse público, pois a Constituição atribui aos indivíduos espaços individuais de ação que são intangíveis ao Estado. É bem verdade que o significado original do direito à privacidade (o direito de ser deixado só) não pode mais sobreviver no Estado contemporâneo. Não é possível mais fazer da privacidade um instrumento de defesa da propriedade, principalmente, aquela de origem ilícita. É necessário, por isso, reorientar o conteúdo do direito à privacidade para além de sua dimensão individualista. Na sociedade da informação, exige-se um resguardo absoluto de informações suscetíveis de originar práticas discriminatórias e o máximo de transparência àquelas que, relativas à esfera econômica dos sujeitos, concorrem para embasar decisões de interesse coletivo. De todo o modo, não é simples escolher entre os dois valores em jogo para se decidir qual deve prevalecer e em qual medida. Necessita-se, no entanto, assegurar a convivência entre a garantia dos direitos individuais e uma progressiva abertura da sociedade. Obviamente, tal abertura não implica o direito do Estado conhecer aquela parcela de informações dos cidadãos localizadas no “núcleo duro” da privacidade. Mas sendo o Estado o ator mais importante na função de distribuição equitativa do ônus fiscal, deve, sem embargo, ter acesso, de forma ampla e irrestrita, aos dados econômicos de seus administrados. Por isso, deve-se buscar um justo equilíbrio entre a noção individualista da privacidade e a satisfação das exigências sociais, pois nem a eficiência legitima o uso indiscriminado das ferramentas de controle pelo Estado e nem, tampouco, o interesse público dá-lhe o poder de invadir a esfera mais íntima das pessoas.

7. Existe uma nova definição para privacidade no século XXI? Qual seria ela?

O direito à privacidade foi originalmente concebido como um direito de defesa do indivíduo contra intromissões indevidas (o direito de estar só). Foi com o tempo alargando seu alcance, de modo a se tornar uma garantia do cidadão de exercer um direito de controle sobre os dados que tenham saído de sua esfera própria. Esses novos contornos foram delineados justamente porque tais direitos podem ser, hoje, vulnerados por maneiras nas quais não é necessária a presença física do intruso, como nos casos de escutas telefônicas, de fotos tiradas à distância e do uso indevido de dados informáticos. Nesse contexto, os problemas contemporâneos da privacidade indicam a necessidade de se garantir um máximo de opacidade às informações suscetíveis de originar práticas discriminatórias e o máximo de transparência àquelas que, referindo-se à esfera econômica dos sujeitos, concorrem para embasar decisões de relevância coletiva. Assim, informações relativas a opiniões políticas, fé religiosa, raça, saúde, hábitos sexuais, dados genéticos devem ser plenamente resguardadas, não podendo ser comercializadas, transmitidas ou acessadas por terceiros, cabendo àquele que a detém a obrigação de mantê-las sob absoluto sigilo e responsabilizado, civil e criminalmente, caso haja violação. Por outro lado, as informações de conteúdo econômico, resguardadas pelo direito fundamental à privacidade, implicam na garantia de que tais informações não podem ser tornadas públicas. Porém, esse direito deve ceder frente ao interesse coletivo. Afinal, não é crível que num Estado social de Direito o órgão arrecadatório não possa ter livre acesso à movimentação financeira dos administrados. A privacidade, nesse caso, só interessa àqueles que têm algo a esconder. Portanto, no mundo contemporâneo, a privacidade deve deixar de ser elemento de proteção da propriedade, principalmente, a de origem ilícita. 


O Autor é Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Auditor Fiscal da Receita Federal.