Entrevista com o Autor


Dr. Isaac Sabbá Guimarăes
em 22/05/2007

A Nova Lei Antidrogas (Lei 11.343/06)

Isaac Sabbá Guimarães é Promotor de Justiça no Estado de Santa Catarina desde 1990; Bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina em 1988; Especialista em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde também cursou mestrado. É Professor de Ciência Política e História do Direito na Unisul/SC, onde já lecionou Direito Processual Penal, Direito Penal, Introdução ao Direito. Professor de pós-graduação, na Unisul/SC, onde leciona Metodologia e Didática do Ensino Superior Aplicada ao Direito. É autor de artigos publicados na Revista Brasileira de Ciências Criminais e na Revista dos Tribunais. Autor da Obra "Nova Lei Antidrogas Comentada – Lei 11.343, de 23.08.2006 - Crimes e Regime Processual Penal".

1- A Lei 11.343/06 chegou causando muita agitação. Quais temas o senhor acredita, irão gerar mais discussões na doutrina e na jurisprudência?
R:
Apesar do longo processo legislativo em que se gestou e se desenvolveu o atual regime legal antidrogas, não vi nenhuma significativa evolução em dois aspectos fundamentais que permeiam os fenômenos ligados às drogas: aquele que se localiza na ponta de toda a cadeia criminal (e sobre o qual não se tem uma acabada política criminal), que se refere às condutas dirigidas ao uso e os procedimentos investigatórios. Nesta questão, considero que o legislador retrocedeu em relação ao que se havia expressado na Lei n.º 10.409/2002, onde o membro do Ministério Público tinha conquistado maiores áreas de oportunidade, inclusive podendo transacionar com o infrator que se dispusesse colaborar de maneira eficaz no sentido de desbaratar, p. ex., uma rede de traficância, uma organização criminosa e, por este meio, poderia dirigir as investigações, como, aliás, ocorre na maior parte dos sistemas processuais, mesmo aqueles que adotam o acusatório, como é o caso do processo penal português. Com relação às condutas relacionadas ao uso, a política criminal adotada pelo legislador é absolutamente dúbia. Manteve-as na condição de crime (e, portanto, a posse, o transporte, a aquisição etc., para o uso, continuam formalmente condutas criminosas), mas as conseqüências jurídico-legais são simbólicas. Houve tantos tropeços de ordem jurídico-penal, que é possível se observar designações diversas para as reações penais estabelecidas no art. 28: ora são designadas de “ penas” (caput, do artigo), ora “medidas educativas” (§ 6º do art. 28). Mas, afinal, o que são? Para mim o legislador evitou gerar melindres com a descriminalização (e a nossa cultura jurídica acredita piamente que a norma penal é a panacéia para os problemas de segurança pública, haja vista as reações de políticos de diversos quadrantes logo em seguida ao infeliz ocorrido com o menino João Hélio, no Rio de Janeiro. A situação da segurança pública não se radica tanto nas leis penais, mas em medidas políticas de melhora das polícias, efetividade à execução das penas, celeridade da justiça etc.) e criou mecanismos que ele próprio sabe serem simbólicos. Pura falácia jurídico-legal. Por um lado, raríssimos municípios brasileiros, mesmo aqueles sedes de comarca, possuem estrutura para a prestação de serviços à comunidade ou para o cumprimento da medida educativa (de programa ou curso educativo). De forma que imagino uma política jurídica a ser realizada pelos magistrados, no sentido de despenalização, de fato, aplicando ao infrator a (simbólica) advertência. É o que provocará ao cabo de alguns anos uma reviravolta na política criminal para, quem sabe, se reconhecer no usuário e no dependente um problema de saúde (mais de saúde do que criminal, entendo). Estes são, em suma, alguns dos aspectos mal-resolvidos do novo regime legal antidrogas e que merecerão aturada atenção por parte da política jurídica no plano do judiciário.

2- O senhor acredita que o artigo 28 é quase abolitio criminis da conduta dos usuários de drogas ilícitas adotada na lei, não tendo o legislador se dado conta de que o problema das drogas é uma via de mão dupla e não de mão única?
R:
Antes de mais, gostaria de refletir um pouco sobre sua expressão “via de mão dupla”. E não sei se a interpreto corretamente, mas entendo que em termos político-criminais a criminalização das condutas tendentes para o uso é ineficaz, por muitos motivos e posso citar alguns. Em primeiro lugar, o uso é o tipo de conduta desviante que faz parte das chamadas cifras negras dos crimes, ou seja, não aparece e tudo o que chega ao conhecimento da autoridade policial são casos de flagrância, uma gota num oceano. Em segundo lugar, o uso afeta tão somente o usuário de droga, e sua potencialidade ofensiva não põe em risco bens jurídicos de terceiros ou com expressão social (aliás, o que acontece com o usuário ou dependente químico é o mesmo que se verifica em relação ao alcoólatra e ao tabagista), de forma que o direito penal aí, nessa área, não cumpre seu objetivo preventivo-especial. Em terceiro lugar, e acho que aqui toco na sua indagação, ao contrário do que muitos imaginam (por falta, inclusive, de um estudo sério de criminologia no Brasil), o uso não é fator criminógeno (ou seja, não produz outros crimes, nem é o fenômeno que alimenta o tráfico), mas está na ponta da cadeira criminal (é o tráfico que gera crimes – e de grande potencial ofensivo – como os de organização criminal, seqüestros, tráfico de armas, lavagem de recursos financeiros, etc.). Apesar dessas evidências, o legislador temeu descriminalizar as condutas relacionadas com o uso, mas as manteve como crime apenas formalmente (talvez pelo receio de gerar uma opinião pública adversa no caso de uma política criminal de descriminalização). Pois bem, trata-se de crime, sob o aspecto estritamente formal, mas atingido por uma política de despenalização (na prática, o usuário não sofrerá conseqüências penais, pelo menos aquelas que têm objetivos preventivos geral e especial, nem uma retribuição) e de desjudiciarização (o infrator não será submetido ao um processo-crime, nem mesmo a um procedimento policial). De forma que, não tenho muitas dúvidas quanto a isso, estamos caminhando para uma descriminalização, que, no entanto, só será equacionável com o acréscimo de políticas (não criminais) de prevenção, educação, de saúde e de ressocialização.

3- O fato da Lei 6.368/76 falar em “para uso próprio” e a nova Lei 11.343/06 falar em “para consumo pessoal”, inovou na conduta típica?
R:
É interessante como nossa cultura jurídica se atém à questão gramatical daquilo que usualmente se refere como a “Vontade do Legislador”, mas ou menos como ocorria ao tempo da Escola da Exegese, do início do século XIX, e sua pergunta reflete isso. Muitos dos nossos bons penalistas fazem verdadeiras ginásticas de raciocínio para elucidar a mítica “Vontade do Legislador”, e ocorre-me a lembrança da polêmica sobre a aplicabilidade das normas procedimentais da revogada Lei Antitóxicos (Lei n. 10.409/02), toda ela partindo da exegese do art. 27, mais precisamente focada no vocábulo “nesta”. Damásio chegou a sustentar a não-aplicação do procedimento porque “relativo aos processos por crimes definidos nesta Lei” e os crimes, na realidade, haviam sido vetados (mas o exegeta parece ter-se esquecido que a política jurídica expressa pelo órgão sancionador era a de empregar aquela Lei Antitóxicos). A questão, no entanto, antes de radicar-se numa leitura positivo-legalista, deve estar vincada na Política Jurídica levada a efeito pelos Juízes, Promotores de Justiça e Advogados e pelo órgão sancionador da lei, que tanto é aplicável para sua pergunta como para muitos outros problemas jurídico-penais. E, em realidade, a questão, para mim é muito simples e respondo-a simplesmente: não, não houve nenhuma inovação na conduta típica.

4- Na Lei 11.343/06, o legislador atribuiu ao usuário, duas expressões “ter em depósito” e “transportar” até então destinadas à figura do traficante. Desta forma, parece-nos claro em tese, que a tipificação de condutas extrapolou o estado limítrofe que separava o traficante do usuário. Qual a sua opinião?
R:
O divisor de águas entre o tráfico ilícito e as condutas tendentes para o uso de drogas encontra-se na expressão volitiva do agente, ou seja, no dolo. Trata-se de elemento subjetivo do tipo, que só pode ser resolvido quando examinadas as circunstâncias que envolvem o fato, in concreto, portanto. Agora uma coisa é verdade: ao incluir o termo “ter em depósito”, que sugere quantidade considerável de droga (ninguém mantém depósito de 10 gramas de cocaína), o legislador acrescentou mais uma dificuldade para o operador do direito, que já não poderá alicerçar seu raciocínio especialmente na circunstância da existência de uma quantidade pequena de droga, embora, surpreendentemente, o § 2º do mesmo art. 28 indique que o juiz deverá levar em conta a “quantidade da substância apreendida”. Ao que parece, mais uma das antinomias criadas pelo nosso inventivo legislador.

5- Com relação ao sujeito que possui na sua residência, vaso com planta capaz de produzir substância ilícita, o legislador na Lei 11.343/06 teve a preocupação de criar mecanismos no sentido de não lhe imputar uma conduta de traficante, ou esse problema se perpetua?
R:
A situação por você exposta é peculiar ao consumidor de droga e é agora tratada de maneira especial pelo § 1º do art. 28, que resolveu um problema de reação penal desproporcional observado ao tempo da Lei. N.º 6.368/76. É lógico que tal situação não poderia ser tratada com o rigor das penas relativas ao tráfico.

6- Com relação à figura do traficante, a Lei 11.343/06 trouxe mudanças significativas? Quais seriam elas?
R:
O processo legislativo que deu origem à Lei confirmava integralmente, no Projeto de Lei que tramitou na Câmara dos Deputados, a política de maior rigor em relação ao traficante, incluindo a execução da pena em regime integralmente fechado. Nesse meio tempo, houve uma decisão do STF considerando inconstitucional o cumprimento de pena em regime integralmente fechado o que se refletiu, a meu ver, no Projeto de Lei do Senado, que extirpou esse gravame do art. 44. De forma que, em razão da omissão e do histórico do processo legislativo, entendo que hoje já se põe uma pá de cal na antiga polêmica e haverá possibilidade de progressão do regime de pena. No entanto, operou-se, também, o aumento dos limites mínimo e máximo das penas de segregação e de multa. Para além disso, considero importante o fortalecimento das medidas assecuratórias relacionadas aos bens e valores, como o seqüestro, o que se amolda à política estabelecida na Convenção de Viena.

7- Na redação do Artigo 36, o legislador introduziu duas novas expressões, “financiar” e “custear”, criando assim mais um tipo penal. Essas expressões dizem respeito ao traficante propriamente dito ou se referem à figura do partícipe? Houve erro na dosimetria da pena aplicada ao tipo?
R:
Não se trata de partícipe, mas de crime comum que é praticado por quem tenciona alimentar de recursos o tráfico. É um crime preparatório de outro, de forma que seu agente é pessoa estranha ao tráfico. E, a meu ver, um crime tão grave quanto o crime-fim, de forma que sua punição deve ser exemplar. Mas atenção: na situação de norma abstrata e geral, ainda não falamos de dosimetria de pena, que é realizada, efetivamente, pelo juiz, ao condenar. E é nessa etapa, a da sentença, quando se cria uma norma específica, individual e concreta, que o juiz dosará a pena.

8- Na sua opinião, a Lei 11.343/06 trouxe elementos suficientes para inibir e combater o tráfico e o consumo de substâncias ilícitas ou as inovações ficaram abaixo das expectativas?
R:
Não, e talvez esta resposta esteja condicionada à perspectivação do problema a partir da minha ótica de Promotor de Justiça (que, entretanto, não me impede de fazer uma crítica global à Lei). Por um lado, temos de ter em mente que a lei penal (como todas, aliás) é fragmentária e precisa ser preenchida por uma política jurídica realizada pelo Ministério Público e pelos Juízes, no sentido de amoldá-la ao hic et nunc político-sócio-cultural, tornando-a mais que o pretérito, o registro do de um dado momento histórico, mas um elemento vivo do direito que, apropriando-me das palavras de Ortega y Gasset, se vai fazendo, um constante e ininterrupto faciendum, no gerúndio (aborrece-me muito situações como a relatada pela imprensa, em que a defesa de Fernandinho Beira-Mar conseguiu impedir que as audiências se realizassem através da teleconferência. Parece-me um preciosismo de garantismo, um exagero acerca da idéia de ampla defesa). Por outro lado, entendo que se deva avançar sobre as áreas de oportunidade do Ministério Público, inclusive na condução das investigações, dando-se poderes ao Promotor para a obtenção da verdade material. Isto ocorre em muitos sistemas processuais regidos pelo acusatório, como é o caso do de Portugal, onde o magistrado do Ministério Público pode até mesmo determinar a prisão preventiva, em alguns casos. Naquele país, já a Lei n.º 27/92, de 31 de agosto, orientava-se pela possibilidade de o Ministério Público adotar diversas estratégias investigatórias, inclusive a de autorizar a não atuação da polícia judiciária. Há muito que se fazer, portanto, no processo penal e na política jurídica nacionais.