Entrevista com o Autor


Dr. Kiyoshi Harada
em 23/05/2007

Sistema Tributário na Constituição de 1988

Kiyoshi Harada é Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; Professor de Direito Financeiro na Universidade Paulista – UNIP; Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário em cursos de pós-graduação lato sensu em diversas instituições de ensino superior. Membro e Professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, entidade complementar da USP. Sócio-Fundador e Secretário-Geral do Instituto de Direito Comparado Brasil-Japão. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos; Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo; Procurador aposentado do Município de São Paulo, tendo sido Diretor do Departamento de Desapropriações e Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da Procuradoria-Geral do Município. Autor da obra "Sistema Tributário na Constituição de 1988 - Tributação Progressiva – Revista e Atualizada até a EC 47/05". 

1- Em seu livro (Sistema Tributário na Constituição de 1988 - Tributação Progressiva) , o senhor menciona que o Sistema Tributário Brasileiro na prática é inseguro, imprevisível, contraditório e caótico. O que gera um sistema tão instável assim?
R:
É a fúria legislativa no âmbito das três entidades políticas. É a excessiva preocupação dos legisladores quanto ao aspecto quantitativo de sua produção legislativa, não se conscientizando que esse tipo de comportamento gera insegurança jurídica. São tantas as leis contraditórias, repetitivas ou semelhantes que é difícil saber quais estão em vigor e quais restaram revogadas pela célebre expressão “revogam-se os dispositivos em contrário”. Nem mesmo as legislações codificadas conseguem oferecer segurança jurídica. Imagine-se então as legislações esparsas que cuidam ao mesmo tempo de ‘n’ matérias diferentes.
Ninguém está obedecendo a técnica legislativa prevista na Lei Complementar nº 95, de 26.02.1998, a qual, prescreve a inclusão apenas de dispositivos pertinentes à ementa que deve definir o objeto das disposições normativas.
Tamanho é o caos instaurado no âmbito da União, que conta com cerca de 181.000 leis em sentido genérico, que foi criado um Grupo de Trabalho de Consolidação de Leis Federais na Câmara dos Deputados. Esse Grupo, presidido pelo Deputado Cândido Vaccarezza, tem pela frente um trabalho imenso e dificílimo.

2- Por que ao contrário do sistema francês e o italiano, o Sistema Tributário Brasileiro não pode ser considerado nacional?
R:
É uma decorrência do princípio federativo. O Brasil é uma Federação e não um Estado Unitário. Cada ente político componente da Federação goza de autonomia política, administrativa e financeira. Daí a necessidade de conferir poder tributário aos três entes políticos que criam os respectivos sistemas tributários. Daí também, a necessidade de normas gerais em matéria de tributação aplicáveis em âmbito nacional. As leis complementares que veiculam essas normas não são leis federais, mas nacionais.

3- Por que razão é tão difícil se determinar o preço de uma mercadoria adquirida antes e depois da incidência do ICMS?
R:
Porque o ICMS, como os demais tributos indiretos, incide sobre si próprio. Ele é calculado por dentro de sorte que no preço da mercadoria está necessariamente embutido o valor do imposto, o que faz com que sua alíquota real seja maior do que a nominal.

4- Em sua obra, o senhor também pontua a realidade dizendo que: “Uma sociedade que só sabe reclamar do tributo, mas fica alheia às despesas públicas, não é uma sociedade participativa, nem contribui para a saúde financeira e administrativa do Estado.” Como esse quadro pode ser revertido?
R:
Esse quadro só pode ser revertido com o exercício pleno da cidadania, principalmente, no que diz respeito aos gastos do Estado com a ampliação desmesurada de seus órgãos, ministérios e do quadro de servidores não concursados, apenas por razões políticas, em prejuízo da eficiência do serviço público. É preciso conhecer noções básicas de direito financeiro, notadamente, a matéria orçamentária, para exercer a fiscalização da execução orçamentária denunciando as irregularidades e ilegalidades das despesas públicas ao Tribunal de Contas competente, na forma do § 2º, do art. 74 da CF. Enquanto o cidadão continuar se omitindo na fiscalização das despesas públicas, o Estado irá aumentando a política de endividamento público irresponsável a exigir tributos cada vez mais onerosos.

5- Fugindo um pouco do tributo em si, com respeito ao Poder Judiciário, como seria possível este adquirir independência no exercício de sua função típica?
R:
A reclamada independência financeira, por si só, não é suficiente para assegurar independência e autonomia no exercício da atividade jurisdicional. Primeiramente, é preciso saber gerir bem os recursos do Judiciário para não ter que ficar na dependência de suplementação de verbas pelo Executivo. Em segundo lugar, os membros da Magistratura, notadamente, os integrantes de Tribunais Superiores, ironicamente, sofrem injunções políticas difíceis de serem contornadas sem afetar o princípio da independência e harmonia dos Poderes, inscrito no art. 2º do CF.
Uma forma de contornar essa dificuldade é o Judiciário ganhar credibilidade e respeito da população em geral, superando a morosidade de sua atuação que tanto tem denegrido a sua imagem. Oportunas as palavras do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini na entrevista concedida ao Consultor Jurídico: "O Judiciário vai ser substituído se continuar nessa disfuncionalidade, nesse distanciamento das aspirações do povo e nesse descompromisso com a Justiça. Hoje, o Judiciário assegura a irresponsabilidade do Estado, que é o seu maior cliente. É uma Justiça para uso próprio" (http://conjur.estadao.com.br/static/text/53997, acesso em 28-3-07). Assiste razão ao ilustre Desembargador. Hoje, os mandados de levantamento das importâncias depositadas em juízo são agendados com três ou quatro meses de antecedência, porque a voracidade da Fazenda fez com que avançasse sobre o dinheiro que não lhe pertence. Por isso, é preciso aguardar sua reposição.

6- Com relação à doutrina da contra-cautela, há perspectiva ou mecanismos já existentes para deter as ações abusivas e por muitas vezes ilegais do poder público, que acabam por comprometer o direito individual?
R:
O instituto da contra-cautela é uma criação pretoriana. Não tem apoio legal, nem fundamento jurídico. Exigir depósito em dinheiro como condição para deferimento da medida liminar em mandado de segurança por exemplo, é retirar o poder cautelar inerente à jurisdição por força do disposto no art. 5º, inciso XXXV da CF. Se o mandado é impetrado contra ato ilegal e abusivo da autoridade pública não há como cogitar de contra-cautela da entidade pública a que pertence a autoridade coatora. Mas, o pior é a manutenção do instrumento normativo da Ditadura Militar, a Lei nº 4.348, de 26-6-1964, que possibilita ao Presidente do Tribunal suspender a execução da liminar e da sentença por razões de segurança, saúde econômica e ordem pública, sem entrar no mérito da decisão monocrática, ferindo de morte o princípio do juiz natural.
Por conta desse instrumento anômalo, engendrado pelo regime político excepcional, nenhuma liminar ou decisão monocrática envolvendo reajustes de vencimentos não pagos vem sendo cumprida pelo poder público, constituindo-se em fonte permanente de endividamento irresponsável, a gerar montanhas de precatórios ‘impagáveis’.

7- O senhor considera o juiz um ser que padece das agruras e arbitrariedades do legislador, ou possui elementos para desataviar o emaranhado de normas que compõem o universo tributário brasileiro?
R:
Não resta a menor dúvida de que o caos legislativo, com superposição de normas conflitantes, contraditórias e propositalmente dúbias, dificulta sobremaneira o trabalho do aplicador da lei. Não raras vezes uma decisão é reformada pela instância superior porque foi fundamentada em lei tacitamente revogada. Outras vezes, o legislador tenta driblar o Judiciário editando leis ‘interpretativas’, porém de fundo modificativo ensejando decisões judiciais dispares.
Em síntese, há um vício estrutural do nosso sistema jurídico, mas há também um vício funcional pela inobservância, pelo Judiciário, do princípio da hierarquia vertical das leis aplicando as normas, especialmente, as de natureza tributária, que conflitam com os princípios constitucionais expressos e implícitos, isto é, deixando de repelir incontinente as normas que não se harmonizam com a Constituição Federal.