Entrevista com o Autor


Dr. Bruno Amaral Machado
em 17/08/2007

O Ministério Público

Bruno Amaral Machado é Promotor de Justiça em Brasília; Especialista em Direito Penal Econômico e da Empresa pela Universidade de Brasília; Master do Programa Europeu Criminal Justice and Critical Criminology; Doutor em Direito (especialidade Sociologia Jurídico-Penal) pela Universidade de Barcelona. Atualmente é professor da Escola Superior do MPU e Diretor Cultural da Fundação Escola Superior do MPDFT. Autor de diversos artigos, resenhas e traduções em revistas e periódicos nacionais e extrangeiros. Recentes publicações: “Weber y la racionalidad del control punitivo contemporáneo”. En: RIVERA BEIRAS, Iñaki (2004), Mitologías y discursos sobre el castigo. Historias del presente y posibles escenarios. Barcelona: Anthropos, pp. 147-166; Fiscalías. Su papel social y jurídico-político: una investigación etnográfica-institucional. Barcelona: Anthropos, 2007 (prelo). Autor da obra "Ministério Público - Organização, Representações e Trajetórias"

1. O que o motivou a escrever sobre o tema e quais os principais pontos abordados?
R: O livro é versão adaptada e resumida da tese elaborada para obtenção do grau de doutor em Direito, na especialidade Sociologia Jurídico-Penal (dez. 2005), pela Universidade de Barcelona. A justificativa da pesquisa ou, em outras palavras, o motivo que me levou a escrever o presente livro, foi a escassez de investigações socio-jurídicas sobre as organizações que integram o sistema de justiça no Brasil. Definitivamente, há um imenso campo de pesquisa ainda pouco explorado.
Na tese, comparo o modelo de MP brasileiro ao modelo espanhol. Trata-se de pesquisa empírica onde, usando ferramentas teóricas da sociologia das organizações e da teoria dos campos de poder, busco confrontar os modelos formais aos modelos construídos (modelos colocados em funcionamento). O ponto de partida são pesquisas quantitativas elaboradas com o MP. No trabalho original, alguns dos dados apresentados nessas pesquisas integram as hipóteses do trabalho.
Para a abordagem, a metodologia foi multidisciplinar. O trabalho de campo inspirou-se nas técnicas de pesquisa da etnografia (entrevistas em profundidade) e análise das promotorias e procuradorias selecionadas para a pesquisa (estudos de caso) a partir de distintas bases empíricas: análise de hemerotecas, análise documental, etc. Importante ressaltar que se trata de investigação qualitativa, sendo fundamental ressaltar que foi elaborada por um promotor de justiça, evidenciando o caráter interpretativo (e não positivista) do trabalho.
Foram selecionadas procuradorias da República em Brasília e promotorias de justiça do MPDF para aprofundar o estudo do caso brasileiro. Na Espanha, a pesquisa centrou-se na Fiscalía Especial para la Represión de los Delitos Económicos Relacionados con la Corrupción em Madri (Promotoria Anticorrupção) e na Promotoria Especializada em Delitos Econômicos e a Delegação da Promotoria Anticorrupção em Barcelona.
No livro editado pela Juruá, apresento o resultado da pesquisa feita no Brasil. Por razões editoriais, o caso espanhol será apresentado ao público no livro “Fiscalías. Su papel social y jurídico-político: Una investigación etnográfico-institucional”, em edição conjunta entre o Observatorio del Sistema Penal y de los Derechos Humanos da Universidade de Barcelona e Anthropos Editorial.
Além de confrontar a diversidade dos modelos formais existentes ao modelo brasileiro, outros aspectos são considerados. A partir do debate acadêmico e jurídico-político sobre o modelo organizacional do MP, pretendi aprofundar o conhecimento sobre a atuação dos promotores (e procuradores) em áreas que passaram recentemente a receber mais atenção do sistema de justiça, como, no contexto brasileiro, a defesa dos interesses difusos e coletivos e o controle (não exclusivamente penal) do poder público (corrupção).
Durante a elaboração da pesquisa (conforme exponho na metodologia), colhi várias entrevistas que expressam percepções de distintos atores sobre o desempenho dos papéis outorgados pela constituição e por distintas leis federais. Na leitura que faço do material produzido, os relatos colhidos representam parte do imaginário (representações, conforme título) sobre o desempenho das tarefas e sobre as interações intra-organizacionais e interorganizacionais, categorias criadas para sistematização do material colhido durante o trabalho de campo. Com a primeira categoria pretendi expressar as formas de interação (e percepções) entre os integrantes da própria organização pesquisada. Com a segunda, busquei expressar as formas de interação (e percepções) entre os membros do MP e atores de distintas organizações, especialmente aquelas que integram o campo jurídico. Certamente, as formas de relacionamento com os profissionais da imprensa e o imaginário dos membros do MP sobre distintos aspectos relacionados à interação com os jornalistas foi um aspecto que pretendi aprofundar.
Por outro lado, a inegável proximidade entre sujeito e objeto da pesquisa faz com que as impressões, e até mesmo a forma de redação do texto final sejam, de alguma forma, uma peculiar representação feita pelo autor do que foi observado durante o trabalho de campo.

2. Nos últimos anos, o combate ao crime organizado e à corrupção, protagonizado por membros do Ministério Público Estadual e Federal, tem de certa forma estancado a sensação de impunidade que outrora habitava no imaginário de todo brasileiro. Como não poderia ser diferente, quem vê seus interesses “atrapalhados” pela ação do MP, tem bradado aos quatro cantos contra os métodos às vezes “inusitados” do órgão no combate à corrupção, como a acusação de que os promotores e procuradores vazam documentos para jornalistas e, com a publicação das reportagens, municiam as denúncias públicas que levam à abertura de processos judiciais. O senhor concorda com essas alegações?
R: Ainda são escassas as pesquisas no Brasil sobre as relações entre MP e imprensa. Trata-se, evidentemente, de uma questão empírica. Recentemente o jornalista Solano Nascimento, em tese de doutorado, aborda as relações entre o MP e a Imprensa (Jornalismo Sobre Investigações: Relações entre Ministério Público e Imprensa/ Departamento de Comunicação Social da Unb). Na pesquisa fica evidenciado que no decorrer da década de 90 houve um crescimento do MP como fonte das denúncias publicadas por jornalistas. Mas a questão é complexa e sugere muitas perspectivas.
Na pesquisa qualitativa elaborada com procuradores da República em Brasília em 2004, creio que um dos pontos mais importantes foi aprofundar a reflexão sobre as formas de interação com a imprensa. Existem várias questões envolvidas. Ao analisar as percepções dos procuradores sobre a interação com a imprensa, ressalto que grande parte dos entrevistados retrata com desconfiança a proximidade excessiva com a imprensa e o vazamento de informações sobre investigações em curso. Um dos relatos que exprimem essa visão (bem difundida no período analisado) foi resumido por um dos procuradores entrevistados na seguinte frase: “Investigar é um verbo que se conjuga no passado”.
A leitura sobre o que foi constatado na pesquisa quantitativa do jornalista deve ser contextualizada. Recordo que em 2003 e 2004 parte da imprensa criticou abertamente o “silêncio” do MPF, sugerindo inclusive que não se estaria investigando o novo governo por questões ideológicas. Os fatos demonstram que esta era uma avaliação equivocada. Na verdade houve uma mudança importante. Parece evidente, embora eu desconheça investigações empíricas sobre o tema (talvez se a pesquisa do jornalista incluir futuramente os anos posteriores ao período analisado), que aparentemente o MPF não parece ser a instituição predominante na origem da divulgação das investigações em curso. Nos relatos dos procuradores da República em Brasília, a grande renovação do MPF nos últimos anos e o impacto das críticas à excessiva exposição de alguns colegas teriam sido fatores importantes para a mudança na forma de interação com a imprensa. As dinâmicas organizacionais também são muito relevantes. A maior ou menor liderança do procurador-geral, por exemplo, é uma variável que não pode ser desprezada. Na minha avaliação, ela explica parte do que foi constatado na pesquisa quantitativa.
Creio interessante contrastar pesquisas quantitativas sobre o pensamento dos membros do MP com pesquisas qualitativas, pois estas permitem aprofundar muitas questões. Pesquisa recente elaborada pelo Ministério da Justiça (2006) sobre o perfil dos membros dos Ministérios Públicos estaduais, ao se indagar sobre a iniciativa dos integrantes em procurar a imprensa para adquirir informações, há uma diferença significativa entre a percepção sobre o próprio comportamento e o da maioria dos colegas. Assim, enquanto 56,5% afirmaram que não costumam procurar a imprensa para adquirir informações sobre os casos em que estejam atuando, este percentual cai para 13% quando se trata da maioria dos colegas.
Outra questão relevante é a leitura que a imprensa confere a determinada ação do MP. Evidentemente a imprensa age movida por interesses distintos, revelando ou não proximidade com os interesses das elites locais. Estudos no campo da Comunicação Social ressaltam a importância da imprensa e especialmente do jornalismo investigativo como instrumentos de accountability e na construção da agenda política. O impacto da mídia na sociedade contemporânea é inegável. Nesse sentido, na medida em que a imprensa fomenta as ações do MP, ela cria clima favorável para que sejam avançadas as investigações. Evidência do que afirmo é o estudo do caso da Máfia dos Fiscais em São Paulo, realizado por Rogério Bastos Arantes (referido na minha pesquisa). Nem sempre a sintonia entre as visões sobre um determinado problema leva à proximidade entre distintos atores. No estudo de caso com os promotores em Brasília, não identifiquei proximidade entre promotores e jornalistas. Ao contrário, a leitura que faço é a de que houve um distanciamento da mídia, até mesmo para evitar quaisquer acusações sobre a imparcialidade. Porém, não há como negar que a forma como a mídia constrói (e reconstrói) os casos tem um impacto relevante na opinião pública.
Retomando a sua pergunta, houve um momento em que determinados jornalistas e membros do MP foram acusados de denuncismo, o que gerou inúmeros debates. Veja, por exemplo, as acirradas discussões no Observatório da Imprensa sobre tal fenômeno em 2001. Porém, ressalto uma vez mais, trata-se de uma questão empírica. O contexto a que me referi anteriormente não pode ser desconsiderado. Creio importante ressaltar que em nenhum dos casos analisados na minha pesquisa pode-se afirmar que os promotores ou procuradores vazaram informações sigilosas para imprensa. O fato é que a imprensa trabalha com inúmeras fontes. O capital social do jornalista está associado aos contatos consolidados em seu campo de atuação.

3. Na sua pesquisa são analisados diversos modelos de MP existentes em distintos países, bem como o debate sobre as relações com o poder político e sua independência em relação aos demais poderes. Qual a sua avaliação sobre o modelo instituído no Brasil com a CF/88?
R: Creio fundamental a leitura do processo de construção do modelo brasileiro. Sobre o tema existem estudos interessantes. Concordo com Rogério Bastos Arantes em certo sentido. O modelo consagrado pelo Constituinte não pode ser dissociado do movimento associativo do MP brasileiro. É fundamental considerar o papel da Conamp na elaboração de um texto unificado sobre o MP. Além disso, durante os debates que precederam à aprovação do texto constitucional, foi fundamental o papel das entidades representativas dos membros do MP. Nesse sentido, foi muito importante o que é retratado como processo de construção interna. Por outro lado, o ideário político predominante na época também era favorável à aprovação do modelo e das garantias conferidas aos membros. Fábio Kerche recupera esse momento e aponta que houve reflexão por parte dos constituintes na definição do modelo brasileiro.
Na atualidade, há grande debate sobre o modelo de MP, especialmente no que tange à independência em relação ao poder político. Nos Estados Unidos, talvez o momento culminante tenha ocorrido com a discussão sobre o estatuto jurídico do Independent Counsel (Promotor Independente) na acusação de Keneth Starr contra o ex-presidente Clinton. Na Europa, podemos encontrar o debate sobre a in(dependência) do MP em diversos países. Na Espanha, por exemplo, são recorrentes as acusações de que o procurador-geral seria manipulado pelo governo, embora o MP deva atuar de acordo com os princípios da legalidade e imparcialidade. Na França e na Alemanha também podemos encontrar debates sobre o modelo de MP, especialmente quando surgem escândalos políticos envolvendo a cúpula dos governos. Por outro lado, o modelo independente nem sempre é avaliado positivamente. Alguns estudos apontam a necessidade de instituir mecanismos de accountability, como os realizados por Di Federico e Guarnieri sobre o modelo italiano (referidos no livro).
Talvez a inexistência de hierarquia interna seja um das características que mais impacto causa no interlocutor externo que se interessa pelo modelo brasileiro. No trabalho de campo no Brasil, registrei diversos relatos sobre os limites da independência funcional e a necessidade de uma política institucional. A consolidação de grupos de estudos, comissões internas e forças-tarefas, assim como as experiências na construção de metas de atuação permitem aprofundar a reflexão sobre as percepções dos próprios membros sobre o princípio da unidade de atuação.