Entrevista com o Autor


Dr. Lauro Joppert Swensson Junior
em 10/09/2007

Anistia Penal

Lauro Joppert Swensson Junior é Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Doutorando em Direito pela Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main (Alemanha), bolsista da Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD). Autor da obra "Anistia Penal - Problemas de Validade da Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683/79)".

1- Sua obra (Anistia Penal - Problemas de Validade da Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683/79)) trata de um dos episódios mais difíceis da história brasileira, o período da ditadura militar. Sendo este um fato tão importante, bem como gerador de uma série de problemas sociais que se perpetuam até os dias de hoje, por que razão não se faz comum acharmos trabalhos históricos e/ou jurídicos que versem sobre o assunto? Existe um certo preconceito com relação a este tema?
R:
Existe realmente uma espécie de “conformismo” que predomina no âmbito jurídico, no sentido de silenciar-se sobre os acontecimentos da ditadura militar e suas conseqüências jurídicas. Ao mesmo tempo em que o nosso passado ditatorial é constantemente tratado pelos jornais, revistas, programas de rádio e televisão, nas salas de aula e nas conversas informais, quase não existem trabalhos científicos, especialmente jurídicos, sobre o tema.
Não há, por exemplo, obra jurídica recente sobre o instituto da anistia penal no Brasil. Apesar de a democracia brasileira ter sido construída a partir de uma Lei de Anistia, muito pouco se sabe sobre ela, e o pouco que se sabe muitas vezes corresponde a versões parciais.
É difícil explicar os motivos desse conformismo. Talvez a preferência pelo silêncio decorra da intenção em se estabelecer o “perdão”, a reconciliação e de não difundir o revanchismo em nosso país. Todavia, por mais que existam argumentos a favor da não punição dos acusados pelos crimes e abusos do regime militar, isso não significa que devemos nos calar e esquecer o passado. Pelo contrário, um dos caminhos para a promoção da reconciliação e da paz social é a reflexão sobre a nossa história, o reconhecimento dos erros, o diálogo, a busca pela verdade, especialmente para que os males do passado não mais se repitam.
Uma outra razão para o fato existir tão poucos livros de direito sobre a ditadura militar está no escasso interesse do mercado nacional em adquirir obras que pretendem aprofundar o conhecimento sobre assunto específico, como é o caso do nosso livro. Pode ser que existam interessantes trabalhos sobre questões relacionadas à ditadura militar, mas que não são publicados. A preferência das editoras jurídicas no Brasil é pela publicação de manuais, comentários de leis, livros preparatórios para concursos e exames, por possuírem maior vendagem. O que acaba empobrecendo a literatura jurídica nacional disponível. Aproveito, desse modo, para parabenizar a editora Juruá, que se apresenta como honrosa exceção, aceitando publicar valiosos trabalhos sobre temas específicos.

2- Na opinião do senhor, qual aspecto do livro merece destaque? O que o senhor considera um “ponto alto” ou um diferencial da obra?
R:
Como dissemos, as pesquisas jurídicas no Brasil revelando episódios da repressão política, analisando jurisprudência dos tribunais militares e envolvendo doutrina sobre a Lei de Anistia são muito raras. E infelizmente a pouca bibliografia que existe costuma pecar pela parcialidade, sustentando uma retórica que se diz científica e não é; que busca alcançar a verdade dos fatos, mas só diz a verdade de um grupo dos envolvidos. Da nossa parte, todavia, procuramos a todo tempo realizar um estudo sereno, academicamente bem informado, utilizando recente bibliografia nacional e internacional sobre o tema.
Dessa forma, acredito que a maior contribuição do livro está no esforço em se desenvolver por uma pesquisa livre de preconceitos, de julgamentos emotivos e sumários, prezando pela neutralidade e imparcialidade. Apesar de sabermos que ninguém é totalmente isento, buscar pela neutralidade, levando em consideração ambos os lados do debate, é o que legitima nosso estudo. É com esse objetivo que dirigimos a nossa análise sobre o problema da validade da Lei 6.683/79 e é nesse ponto que acreditamos estar o seu maior valor.

3- Diante de todas as exigências legais necessárias hoje para o correto julgamento pelos tribunais nacionais, seria possível condenar os responsáveis pelas atrocidades praticadas durante o regime militar?
R:
Se forem respeitadas as exigências prescritas pelo nosso ordenamento jurídico para o julgamento por um tribunal nacional dos responsáveis pela criminalidade da repressão política do regime militar, a punição penal dessas pessoas seria hoje impossível, em razão da extrapolação do prazo prescricional dos delitos praticados (art. 109 do CP). O prazo para a prescrição de crimes com pena máxima superior a 12 anos é de 20 anos. Somente para os chamados “crimes continuados”, como a ocultação de cadáver (art. 211 CP), poder-se-ia ensejar a punição penal dos agentes estatais, por tais crimes não encontrarem-se prescritos.
Mas existem outras dificuldades jurídicas para a punição, além da prescrição. Se considerássemos ficticiamente que os crimes não estivessem ainda prescritos, mesmo assim a punição penal estaria condicionada à validade da Lei de Anistia (Lei 6.683/79) e, caso fosse considerada inválida, dependeria ainda de se demonstrar em juízo, caso a caso, que o agente estatal não agia com autorização legal (exercício regular do direito), com o objetivo de assegurar o cumprimento da lei ou de ordens de superior hierárquico (estrito cumprimento de dever legal, obediência hierárquica) etc.
Vale notar que, diante da impossibilidade de punição dos crimes e abusos ocorridos durante uma ditadura segundo as exigências legais, alguns países que enfrentaram o problema da justiça de transição resolveram afastar as dificuldades postas pela legislação da época, considerando essas leis inválidas. É o que aconteceu, por exemplo, no julgamento dos crimes praticados pelo regime nazista e, mais recentemente, dos delitos praticados pela ex-República Democrática Alemã, como o caso dos atiradores do muro de Berlim (Mauerschützen). Daí a retomada pela doutrina da antiga e fundamental discussão se leis que contrariam o sentimento de justiça e de humanidade possuem validade jurídica.

4- Ao contrário do que se imagina, a anistia, o indulto, a graça e a comutação de pena não são atos de perdão, mas sim de clemência. Desta forma por que se mostra problemática a denominação de clemência para esses atos legislativos mencionados?
R:
Os chamados “atos de clemência” (anistia, indulto, graça e comutação de pena) são atos legislativos do Poder Público que: a) extinguem as conseqüências punitivas de uma condenação penal total ou parcialmente; b) declaram a impossibilidade de continuar sendo aplicada ou de se aplicar no futuro a sanção penal para determinados casos ou, então, c) atos que diminuem a intensidade da sanção.
Esses atos foram historicamente concebidos como um “presente” dado gratuitamente por um “Deus-monarca” aos seus súditos, em razão da sua bondade. O que acabou gerando hoje em dia o equívoco de que os atos de clemência correspondem a atos de benevolência do Estado. É problemática tal denominação, pois quando falamos em atos de clemência para nos referirmos à anistia, ao indulto, à graça e à comutação de pena, dá-se a entender que o Estado está sendo benevolente com seus respectivos destinatários, o que não é verdade.
Como está exposto no livro, não há que se dizer que o Estado que concede anistia é benevolente, bondoso, gracioso ou “clemente”. A anistia e os demais atos de clemência não são um simples presente concedido gratuitamente aos seus destinatários, mas o resultado de um acordo político, com interesses, condições, finalidades etc. preestabelecidos.

5- Em seu livro (Anistia Penal - Problemas de Validade da Lei de Anistia Brasileira (Lei 6.683/79)), o senhor menciona que a anistia no campo da política é o resultado de um acordo político e que o Estado invariavelmente é forçado ou pressionado a fazê-lo, por ser politicamente interessante ou necessário. Diante disso, não podemos nos furtar à pergunta: Com o atual momento político que o Brasil enfrenta, seria interessante ou necessário conceder anistia ao ex-ministro e deputado cassado José Dirceu?
R:
Sobre a campanha lançada por José Dirceu para que ele seja anistiado e retorne assim à atividade política, existe atualmente um verdadeiro embate entre partidários e contrários à concessão dessa anistia, cada qual com seus argumentos e justificativas. Por um lado, sustenta-se que a cassação do mandato do ex-ministro e deputado pelo Congresso Nacional é absolutamente devida, em razão das denúncias da sua participação no esquema de corrupção, denominado “mensalão”. Por outro lado, sustenta-se que não foram apresentadas provas suficientes de sua culpa, e por isso sua condenação é injusta.
Eu, como cidadão, tenho minha opinião sobre esse caso, que decorre das minhas concepções e avaliações pessoais, da ideologia e dos interesses por mim defendidos etc. (que não vem ao caso ser aqui exposta). O mais interessante da questão sobre a concessão da anistia a José Dirceu está no fato dela mostrar de forma clara algo que é tantas vezes esquecido ou pouco tratado pelos estudiosos brasileiros: que o direito é um produto da política.
Todas as decisões sobre a oportunidade de criar ou de modificar uma norma jurídica dependem de avaliações políticas, de ideologias e interesses expressos pelos agentes políticos que compõem o Poder Legislativo num dado momento histórico. E com a anistia não é diferente. Se porventura José Dirceu for anistiado, isso se dará não porque tal anistia é justa ou devida. Mas porque a vontade política dos legisladores num dado momento histórico assim o quis e assim decidiu.

6- A concessão de anistia resulta na extinção da punibilidade do ato ou culmina com a extinção do crime? Em tempo, a responsabilidade civil do anistiado é alcançada pelos efeitos da anistia?
R:
Como foi exposto no livro, a anistia penal torna a norma primária (ou a norma de sanção) inaplicável ao caso a que ela se refere. Isso significa que o Estado não poderá mais aplicar a sanção penal contra aquelas pessoas que são anistiadas. Ou seja, extinguem-se por completo a pena e todos os seus efeitos, inclusive o pressuposto de reincidência, como se o delito nunca tivesse sido praticado.
Por outro lado, a norma secundária (ou a norma de conduta) a que se refere a anistia não é derrogada, isto é, não deixa de ser válida. Isso ocorre para que permaneça, para quem praticou o ilícito penal, a obrigação de indenizar e reparar os danos ocasionados à vítima e a terceiros. A anistia, por não extinguir a norma secundária, não extingue a responsabilidade civil do anistiado. Não é porque uma pessoa foi anistiada e deixou de sofrer a sanção penal que ela não será responsabilizada civilmente pelos seus atos
Respondendo ainda a sua pergunta, não há que se confundir anistia com revogação ou ab-rogação da lei penal. A ab-rogação, seja definitiva, seja temporária (suspensão), implica a cessação de vigência tanto da norma primária como da secundária, enquanto que a anistia opera somente sobre a norma primária. Ao contrário da anistia, a ab-rogação elimina qualquer responsabilidade civil. Ademais, a revogação tem natureza preventiva, porque ela se aplica às condutas futuras, ao passo que a anistia tem natureza retroativa, ou seja, aplica-se a fatos do passado.

7- O senhor analisa em sua obra legislação e fatos que há quase vinte anos fazem parte da história brasileira. Atualmente, qual a relevância do estudo para a história nacional? Esta relevância se aplica apenas ao caso brasileiro, ou também à história de outros países que passaram por transições democráticas?
R:
Apesar do livro tratar de legislação e acontecimentos que há duas décadas fazem parte da história brasileira, a relevância do nosso estudo está no fato enfrentarmos um dos principais tabus da história nacional, que perdura até os dias de hoje: a questão da impunidade dos responsáveis pelos crimes e abusos cometidos durante a repressão política do regime militar.
A impunidade dos agentes estatais que no período da ditadura militar praticaram diversos crimes graves contra os inimigos do governo é uma ferida aberta no Brasil. A não-punição dos agentes da repressão estatal pelas torturas, mortes e “desaparecimentos” praticados não é um assunto resolvido na consciência da população brasileira. E a questão sobre a validade da Lei de Anistia que amparou essa impunidade gera ainda grandes controvérsias tanto no debate informal como no debate acadêmico. Nunca houve e continua não existir consenso sobre a validade da anistia concedida aos agentes da repressão política da época da ditadura.
Por exemplo, a ação declaratória movida em novembro de 2006 contra o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, pela qual cinco membros de uma mesma família pedem que o comandante do DOI-CODI no período de 1970 a 1974 seja reconhecido pela Justiça como torturador e que foi amplamente divulgado pela mídia, mostra que o assunto não foi esquecido, mas está na ordem do dia.
Além disso, nossa pesquisa situa-se num contexto de grandes debates e questionamentos que vêm ocorrendo nos últimos anos acerca da validade das leis de anistia decretadas pelas ditaduras sul-americanas (Argentina, Chile, Peru, Uruguai etc.). Dessa forma, acreditamos que as reflexões feitas a partir da análise da realidade brasileira acabam contribuindo, de certa forma, com essas discussões latino-americanas e, quem sabe, com o debate internacional sobre o tema da justiça de transição.