Entrevista com o Autor


Dr. José Soares Filho
em 11/01/2008

Os Impactos da Globalização na Sociedade

José Soares Filho é Juiz do Trabalho aposentado; membro efetivo do Instituto Latinoamericano de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social, do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia de Letras Jurídicas de Pernambuco; Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Professor da Universidade Católica de Pernambuco, na graduação e na pós-graduação; professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região. Autor das obras "Sociedade Pós-Industrial - e os Impactos da Globalização na Sociedade, no Trabalho, na Economia e no Estado" e "Elementos da Ordem Jurídica Internacional e Comunitária".

1- O senhor acredita ser a globalização uma via de mão única para o desenvolvimento, invariavelmente resultando em acúmulo de benefícios para uma privilegiada parcela da sociedade e carência de meios de vida para a grande maioria da população, de forma acentuada nos países subdesenvolvidos?
R:
O processo da globalização, em si, é salutar. Com efeito, a humanidade move-se, há muito tempo, num espaço global, sob vários aspectos. Esse fenômeno indica uma tendência irreversível para a “civitas maxima” (Hans Kelsen), expressão que, em termos modernos, se traduz por “aldeia global”. Ele tem contribuído, através dos meios de comunicação, para o desenvolvimento da educação, dos conhecimentos científicos, bem como de movimentos sociais de grande envergadura e considerável proveito para a humanidade.
O aspecto da globalização condenável é o econômico, porquanto acarreta enorme concentração de renda e, conseqüentemente, a exclusão social na medida em que concorre para o desemprego estrutural. Esse processo baseia-se num equívoco palmar, ao apresentar-se como uma ideologia irrefutável, como a única explicação da realidade nos diversos planos das relações sociais, ou seja, na acepção de via única.

2- Com o desenvolvimento cada vez maior de tecnologias que substituem diretamente as ações do homem, o cenário é de extinção progressiva dos empregos, sem haver perspectiva de recuperação dos mesmos, tendo inclusive as empresas, ganhos maiores de capital com a otimização dos remanescentes. Há como se reverter esse quadro?
R:
Esse quadro, que revela o caráter perverso da globalização, pode ser revertido. Todavia, isso é uma tarefa muito difícil e realizável a longo prazo. Para tanto, urge redirecionar o processo, no sentido de que ele cumpra a finalidade para a qual foi (ou deveria ser) concebido, ou seja, servir como elemento de progresso para os seres humanos indistintamente, em todos os quadrantes, atendendo às legítimas aspirações e necessidades do homem em seus múltiplos aspectos e não apenas o econômico.
Não há teoria infalível, projeto acabado nem fórmula específica, capaz de operar essa reversão. É indiscutível que urge buscar uma nova globalização. A propósito, valho-me da opinião do inspirado geógrafo baiano Milton Santos (citado em meu livro ora referenciado), para quem a história do homem dispõe, afinal, das condições objetivas, materiais e intelectuais “para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos” e empreender o início de uma nova trajetória; e “a globalização atual não é irreversível”, pois “a mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano”, bastando para isso que “se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana”.
Indica-se como meio eficaz para contrabalançar os efeitos perversos da globalização e, assim, construir um novo modelo de relações no plano mundial, a ação da sociedade civil organizada no plano internacional: “uma política de mundialização ‘por baixo’- orientada por um novo internacionalismo de solidariedade e de cidadania ampliada, para além das fronteiras nacionais” -, somente ela capaz de “aglutinar forças e pressionar governos na luta pela realização dos conteúdos normativos universalistas já consagrados e pelas reformas ou pela implantação de instituições indispensáveis de governança regional e global, no sentido dum relacionamento mais democrático e responsável entre os estados e de maior integração dos cidadãos individuais e de associações cívicas”(Held); a internacionalização do direito do trabalho, como resposta adequada à globalização, com a correspondente a ação internacional de trabalhadores e sindicatos.
Na concepção de Hardt e Negri, surgiu uma ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando, em outras palavras, uma nova forma de supremacia, regulada por uma substância política denominada império, configurado como o poder supremo que governa o mundo. Trata-se da “nova forma global de economia”, ou seja, a economia globalizada. Segundo eles, o império (diga-se: o processo da globalização), em sua versão moderna, “posiciona-se agora acima dos Estados-nações na qualidade de autoridade final e demonstra, de fato, uma nova forma de soberania”, que resulta do poder da economia globalizada.
O império – observam Hardt e Negri – exerce enormes poderes de opressão e dominação, mas talvez não piores do que as antigas formas de dominação. O desafio político que se põe ante esse fenômeno “não consiste simplesmente em resistir a esses processos, mas em reorganizá-los e canalizá-los para novos objetivos”. E concluem afirmando que “as forças criadoras da multidão que sustenta o Império são capazes também de construir, independentemente, um Contra-império, uma organização política alternativa de fluxos e intercâmbios globais”, eis que “Os esforços para contestar e subverter o Império, e para construir uma alternativa real, terão lugar no próprio terreno imperial – na realidade, essa nova luta já começou”. “Mediante tais esforços e muitos outros da mesma natureza, a multidão terá de inventar novas formas democráticas e novos poderes constituintes que um dia nos conduzirão através e além do Império”. Em suma, a reversão desse quadro poderá fazer-se pela força das próprias massas populares que dão sustentação ao processo de globalização, contanto que organizadas em nível mundial.

3- O fenômeno da globalização foi o sopro que faltava ao capitalismo. A diversificação e a oferta de bens e serviços é cada dia maior e na mesma proporção exige consumo. Diante deste fato, não parece estar o capitalismo moldado pela globalização, caminhando para um precipício, uma vez que a precariedade das relações trabalhistas, acompanhada da diminuição constante de ofertas de emprego minam dia a dia a capacidade de consumo da população?
R:
Sem dúvida. Respeitáveis intelectuais – dentre os quais Henderson e Wallerstein - vislumbram a crise do sistema neoliberal (que confere sustentação ideológica ao processo de globalização) e o declínio do sistema capitalista de produção (que lhe propicia condições favoráveis, pois esse sistema encerra uma tendência expansionista, como já notara Marx no Manifesto Comunista). Wallerstein afirma que o mundo capitalista está desagregando-se e que sua desintegração ocorrerá nos próximos 30 ou 40 anos, em conseqüência da pressão popular pela democracia, inexistente no atual sistema político e econômico, dada a polarização socioeconômica que ele acarreta, quer no plano nacional, quer no cenário mundial.
Além disso, o capitalismo, envolvido no processo de globalização e tendo como esteio a economia de mercado, mostra-se incapaz de propiciar às populações o bem-estar prometido; tem concorrido para a degradação do meio ambiente e do ecossistema, que representa séria ameaça à sobrevivência da espécie humana, assim como para a ruptura social e econômica, que gera a pobreza e a miséria; e, sobretudo, não consegue – nem se propõe – estabelecer o equilíbrio entre os fatores da produção, indispensável para o progresso com justiça social, o que impede alcançar a paz, a qual tem como pressuposto a justiça.
Além disso, como se menciona na questão ora formulada, ao promover a precarização das relações de trabalho – em flagrante detrimento dos trabalhadores – e acarretar o desemprego massivo, o capitalismo concorre para o próprio aniquilamento, com o fracasso da produção, porquanto se reduz consideravelmente o consumo.

4- Existe alguma proposta alternativa de política em andamento, que contraponha-se ao atual modelo excludente de globalização?
R:
A OIT, no relatório final apresentado, em 24.2.2004, pela Comissão de alto nível por ela instituída para tratar da dimensão social da globalização, preconiza “um processo de globalização dotado de uma forte dimensão social, baseada em valores universais compartilhados e com respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa; uma globalização justa, integradora, dirigida democraticamente e que ofereça oportunidades e benefícios tangíveis a todos os países e a todas as pessoas”.
Essa é uma das formulações de grande prestígio, em termos de reação ao processo de globalização econômica, no sentido de revertê-lo, eliminando seus malefícios e tornando-o benéfico à humanidade. Tais proposições situam-se ainda no plano da teoria, dependendo de múltiplas e vigorosas ações por parte dos diversos segmentos da sociedade, organizados em esfera mundial, para que se convertam na realidade que todos almejamos.
Constata-se na América Latina um fenômeno político que indica uma postura de contraposição ao modelo excludente de globalização que se desenvolve no planeta. Trata-se das mudanças ocorridas recentemente, quanto à linha programática e ideológica, nos governos da Bolívia, da Venezuela, do Equador, da Argentina e, de certo modo, do Brasil. Com efeito, os novos governantes desses países assumem posição, em maior ou menor proporção, contrária ao modelo político neoliberal e ao processo de globalização a ele correspondente. Pretendem resgatar os legítimos interesses de seus povos, há séculos espoliados pelas potências coloniais e neocoloniais. Essa tomada de posição aponta no sentido da formação de um novo bloco econômico na região, a ALBA, paralelamente ao MERCOSUL, num claro enfrentamento do processo de constituição da ALCA, que atende prioritariamente aos interesses norte-americanos e representaria a globalização na esfera continental. Delineia-se aí, a nosso ver, uma proposta de política alternativa ao atual modelo excludente de globalização.

5- Em suma, o que vem a ser uma empresa de economia social ou solidária?
R:
A economia social ou solidária caracteriza-se pelo fato de que, sem deixar de considerar o mercado, enfatiza a presença do ser humano e da comunidade como ponto de partida e destinatário da política econômica. Trata-se de promover ações conjuntas com o intuito de obter benefícios compartilhados em áreas de interesse comum, com atividades empresariais fundadas na autogestão, na solidariedade e na democratização das relações de trabalho e que, ao mesmo tempo, produzem resultados econômicos significativos.
As empresas dessa natureza significam um contraponto à estrutura do sistema capitalista de produção em sua feição tradicional, ou seja, representam uma alternativa à economia de mercado, que constitui a marca característica desse sistema. Situam-se entre as instituições públicas e o mercado e compõem o denominado “terceiro setor”. Sua posição no contexto econômico-social – terceiro sistema – caracteriza-se pela produção de bens de uso e participação social na gestão. Não têm como objetivo o lucro, eis que os resultados econômicos obtidos em suas atividades são reinvestidos na mesma, sem que deles usufruam seus diretores.
A economia solidária tem um caráter socializante, eis que concebida há não menos de dois séculos por pensadores socialistas tais como Robert Owen, Fourier, Buchez, Proudhom. As empresas que se inserem nesse sistema admitem a possibilidade de solução dos problemas sociais através do pleno emprego, oferecendo proposta alternativa de obtenção de renda por aqueles que estão fora do mercado, cuja situação configura uma nova questão social, não prevista pela sociedade industrial e não considerada pelo Direito do Trabalho. Trata-se de pessoas, grupos sociais excluídos do sistema e que se sentem inúteis (por não participarem ativamente do processo produtivo e, assim, estarem fora do mercado).
Exemplo típico de empresas de economia social ou solidária são as cooperativas de produção, que, como tais, geram empregos e renda, enquanto produzem resultados econômicos estruturantes, porquanto se tornam empreendimentos sustentáveis. Combinam lógicas sociocoletivas e eficiência empresarial; por conseguinte, operam em relações de mercado e em formas de interação e solidariedade social.
No Brasil, hoje, o cooperativismo aparece como solução para o problema do desemprego, que atinge grande parte dos trabalhadores de todas as profissões, desde as mais modestas às mais qualificadas. A Lei n° 9.867, de 10.11.99, que dispõe sobre a criação e funcionamento de cooperativas sociais visando à integração social dos cidadãos, indica, como finalidade delas, inserir as pessoas em desvantagem no mercado econômico, por meio do trabalho, e, como seu fundamento, o interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos. Entre suas atividades se incluem a organização e gestão de serviços sócio-sanitários e educativos, bem como o desenvolvimento de atividades agrícolas, industriais, comerciais e de serviços. Admitem-se, com previsão estatutária, na Cooperativa Social, uma ou mais categorias de sócios voluntários, que lhe prestem serviços gratuitamente e não estejam incluídos na definição de pessoas em desvantagem (deficientes físicos e psíquicos, dependentes químicos, egressos de prisões, condenados a penas alternativas à detenção, adolescentes em idade adequada ao trabalho e situação familiar difícil do ponto de vista econômico, social ou afetivo).

6- Na sua opinião, é tão somente o sistema capitalista que precisa mudar, ou se faz necessário primeiramente a mudança de pensamentos e atitudes dos sujeitos que compõem o sistema capitalista?
R:
Sem dúvida, para se reverter o quadro sócio-econômico instaurado pela globalização, é imprescindível mudar o sistema capitalista de produção; mas, para que essa alteração ocorra, impõe-se, antes de tudo, mudar as mentalidades e as atitudes das pessoas que o compõem. É preciso que os cidadãos tenham a consciência de sua responsabilidade nesse processo e a convicção de que podem nele influir decisivamente.
A formação de tal senso far-se-á pela atuação das organizações da sociedade civil, tais como os sindicatos, as ONGs, as associações religiosas e culturais, os partidos políticos, sem desprezar a participação dos organismos estatais, em nível nacional e internacional – em destaque a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que, mediante sua atividade normativa e a dos órgãos de controle de aplicação de suas normas, tem exercido, com admirável obstinação, um importante papel nesse sentido
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