Entrevista com o Autor


Dr. José Guilherme Ferraz da Costa
em 05/03/2008

A Seguridade Social e Incentivos Fiscais

José Guilherme Ferraz da Costa é Procurador da República; Mestre em Direito Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e ex-Procurador Autárquico do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, tendo sido nomeado, ao longo de sua carreira, após aprovação em concursos públicos, também para os cargos de Procurador da Fazenda Nacional e Juiz Federal substituto, vinculado ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Autor da obra "Seguridade Social & Incentivos Fiscais".

1- É público e notório que, no Brasil, a proteção social das grandes massas excluídas constitui um desafio permanente a exigir parcerias entre o Estado e a comunidade. Nesse contexto, qual a sua avaliação acerca do papel da seguridade social e de suas perspectivas de reformulação?
R:
A Constituição Federal de 1988 trilhou o caminho certo quando estruturou um subsistema público de saúde universal, um sistema de previdência pública básica forte (posteriormente enriquecido pela previdência privada, voltada aos mais abastados, nos termos da Emenda Constitucional nº 20/98) e um subsistema de assistência social voltado a suprir as lacunas da previdência básica em favor dos segmentos mais fragilizados da população e impossibilitados de ter acesso sequer à previdência básica, isto mediante articulação do Poder Público com a iniciativa privada.
A meu ver, essa forma de estruturação atende às indicações da Organização Internacional do Trabalho para a extensão da proteção social em cada país, com inclusão paulatina de toda a população, o que situa o sistema jurídico brasileiro, nesse particular, num patamar razoável de modernidade. Portanto, a experiência internacional indica que tal sistema deve ser implementado e expandido, em busca do ideal de máxima cobertura às necessidades básicas do ser humano.
Contudo, a implementação prática de tal sistema esbarra em diversas distorções relacionadas ao respectivo custeio, as quais, muitas vezes, não ocupam o devido espaço nas discussões públicas acerca de mudanças legislativas correlatas. Como exemplo, posso citar o crônico fenômeno da utilização de recursos de contribuições vinculadas à seguridade social para fazer frente a despesas públicas estranhas àquele sistema (lembre-se, nesse ponto, a desvinculação de receitas da União, prevista na Emenda Constitucional nº 42/2003 até 2007) , bem como a renúncia fiscal de receitas de contribuições sociais da seguridade em favor de contribuintes, que desempenham atividades não abrangidas pelo escopo do sistema de seguridade social, inclusive em favor de camadas mais favorecidas da população e em detrimento de quem mais necessita do investimento público em benefícios e serviços.
Essas questões, tidas como essenciais em qualquer lugar do mundo onde se discute seguridade social, devem entrar na pauta de discussão com prioridade, antes de se cogitar acerca de propostas que impliquem a restrição da cobertura previdenciária pública ou mesmo uma acentuada privatização do sistema de seguridade, estas na contramão das tendências ditadas pela evolução internacional da idéia de proteção social.

2- Diante da realidade na qual se encontra imerso o país, com um contingente cada vez maior de miseráveis, frequentemente surgem críticas ao assistencialismo público empregado em substituição à filantropia praticada por entes privados. No seu entendimento, foi equivocada a opção adotada pela Constituição Federal de 1988 de expandir a atuação estatal no campo da assistência social?
R:
No Brasil, tradicionalmente a assistência social vem sendo prestada com primazia por entidades privadas conhecidas em geral como “filantrópicas”, sendo que o constituinte de 1988 optou por inserir a assistência social no sistema de seguridade social como mais uma ferramenta para garantir a expansão da cobertura desse sistema em direção aos mais necessitados, implicando um incremento da atividade estatal nessa seara, mas sem prejuízo da tradicional contribuição majoritária do segmento privado. Entendo que essa opção não discrepa dos horizontes apontados pela tendência internacional de expansão da cobertura dos sistemas públicos de seguridade, embora exija a implementação integrada de medidas de fomento à reintegração social e à viabilização do pleno emprego.
Nessa esteira, constata - se a relevância de programas de renda mínima, como no caso do benefício de prestação continuada previsto na CF/88 para idosos e portadores de necessidades especiais, hoje regulamentado pela Lei Orgânica de Assistência Social, e, mais recentemente, no caso do benefício conhecido como “bolsa família”, ambos mantidos pelo Governo Federal, os quais vêm contribuindo para resgatar da miséria enormes contingentes de brasileiros. Vejo nisso a concretização de parte do ideário da seguridade social e não, como alguns opinam, gastos públicos extravagantes em estímulo à ociosidade. Deve-se atentar para o fato de que, como apontam estudos de sistemas comparados ao redor do mundo, tais políticas exigem iniciativas complementares que favoreçam a qualificação e integração dessas massas ao mercado de trabalho, dentro do possível, extirpando-se traços de clientelismo, demagogia e exploração político-eleitoral, que muitas vezes acompanham a prática de tais programas.

3- A Constituição Federal de 1988 adotou modalidades de incentivos fiscais relacionadas ao sistema de seguridade social, sob a forma de imunidades tributárias. Quais são esses incentivos e a que fins específicos se prestam?
R:
No sistema de seguridade social delineado na CF/88, podem ser identificados níveis de intervenção estatal em seus diversos componentes (saúde, previdência e assistência). Na vertente da saúde, por exemplo, temos o mais elevado grau de intervenção do Estado, a ponto de se estruturar um sistema único público e universal, com participação reduzida e meramente complementar da iniciativa privada, razão pela qual não encontramos na CF/88 incentivos fiscais específicos para entes privados na área de saúde. Na área da assistência social, temos o inverso, ou seja, uma predominância da atuação de entidades privadas, embora com um estratégico papel de coordenação e expansão por parte do Poder Público, sendo por isso previstos na CF/88 uma imunidade referente a tributos em geral (art. 150, VI, c) e outra referente a contribuições sociais para a seguridade (art. 195, §7º), ambas voltadas para as entidades privadas que verdadeiramente prestem assistência social, proporcionando mínimos sociais para pessoas em extrema situação de carência. Portanto, tais incentivos visam estimular entes privados a assumirem tarefas que, se não supridas adequadamente, deveriam ser assumidas pelo próprio Estado, por meio da assistência social pública. Com efeito, embora possam ser detectados, no texto constitucional outras imunidades relacionadas à seguridade social, estas são as principais, posto que servem para estimular a iniciativa privada a agir, ampliando os níveis de proteção social no sistema.

4- A propósito desse tema, as entidades prestadoras de serviços de saúde, remuneradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), podem ser consideradas entidades de assistência social detentoras de imunidade fiscal?
R:
Entendo que não, uma vez que o conceito de “assistência social” plasmado na CF/88 tem como nota característica a gratuidade dos serviços prestados, o que não ocorre no caso de tais entidades, as quais, embora não sejam remuneradas diretamente pelas pessoas carentes usuárias do SUS, são remuneradas pelo Poder Público com base nas normas daquele sistema único. Logo, não se trata aí de assistência social propriamente dita, a qual se configura apenas quando tais entidades prestem serviços absolutamente gratuitos à clientela carente em geral. Entretanto, a Lei 9.732/98 admite que tais entidades gozem daquele benefício fiscal, quando dediquem 60% de seus atendimentos ao SUS, o que constitui mera isenção concedida por lei ordinária e não a imunidade do art. 195, §7º, exigindo-se assim que a União indique recursos adicionais de seu orçamento geral, visando compensar a perda arrecadatória do orçamento da seguridade social.

5- Qual o posicionamento do STF a respeito das entidades que mesclam serviços assistenciais com serviços de natureza onerosa?
R:
Em decisão liminar na ação direta de inconstitucionalidade, o STF já entendeu possível a mescla de serviços assistenciais com serviços de natureza onerosa por parte de entidades imunes, suspendendo, com base nessa premissa, a vigência de dispositivo da Lei 9.732/98 que conferia nova redação ao art 55 da lei 8.212/91, prevendo o reconhecimento como entidade beneficente de assistência social apenas daquelas que promovessem gratuitamente e em caráter exclusivo a assistência social beneficente a pessoas carentes, em especial para crianças, adolescentes, idosos e portadores de necessidades especiais.
Entendo, na esteira da doutrina internacional e nacional predominante, que até se pode admitir que entidades de assistência social beneficiárias de imunidades ou isenções fiscais mantenham uma parcela de serviços remunerados para incrementar as fontes de recursos aplicados em suas atividades assistenciais. Seria o caso, por exemplo, de uma entidade que prestasse serviços a menores carentes e pessoas portadoras de necessidades especiais e mantivesse uma pequena loja de produtos artesanais produzidos pelos seus próprios assistidos, com renda revertida para o custeio da entidade. Contudo, o que vem ocorrendo é que entidades empresariais que mantêm uma ínfima parcela de serviços assistenciais (às vezes restrita a seus próprios empregados) querem, com isso, gozar de imunidade integral de contribuições para a seguridade social. Esse tipo de distorção configura outra forma de desvio de recursos da seguridade social em prejuízo da saúde financeira do sistema, uma vez que deixam de ingressar recursos nos cofres da seguridade que deveriam financiar, dentre outras, as aposentadorias e pensões dos próprios empregados dessas entidades.
No caso da legislação regulamentadora da imunidade do art. 195, §7º, da CF/88 existe a exigência de que 20% das receitas da entidade imune sejam aplicados em gratuidades. Comungo do pensamento de abalizada doutrina que considera esse percentual bastante modesto para caracterizar uma entidade como assistencial por natureza. Basta lembrar, a título de exemplo, que o Código Tributário Alemão exige, para reconhecimento do caráter assistencial de uma entidade dois terços de seus serviços sejam dedicados a pessoas carentes, isto visando a concessão de limitados benefícios fiscais. Penso que, em cada caso, deve se verificar, pelo exame do conjunto de suas atividades, se o escopo principal da entidade é mesmo assistência social ou se esta apenas se “disfarça” de filantrópica para gozar de favores fiscais.

6- E quanto à inserção de entidades educacionais, inclusive instituições de ensino superior, dentre as de assistência social?
R:
Quanto às entidades educacionais, o STF tem admitido sua inserção entre os beneficiários da imunidade prevista no art. 195, §7º. Discordo de tal interpretação, considerando que as políticas de educação em geral, a despeito de sua notória relevância social no nosso ordenamento constitucional, têm suas próprias formas de financiamento e não se inserem no âmbito do sistema de seguridade social (ressalvados casos restritos de educação imediatamente voltada à integração ao mercado de trabalho). Conceder a referida imunidade a entidades educacionais (no tocante a contribuições para a seguridade social) implica mais uma forma de desvio de finalidade. Afinal, deixam de alimentar os cofres da seguridade recursos que deveriam financiar aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais, os quais passam a financiar outras políticas públicas.
Nessa linha de raciocínio, a recente implementação do programa de concessão de bolsas em Instituições de Ensino Superior, conhecido como PROUNI, ancorado em grande parte na concessão de imunidades e isenções de contribuições sociais concedidas com base na Lei nº 11.096/2005, constitui um fato a ser objeto de profunda reflexão, quanto ao seu impacto sobre as finanças da seguridade social, sem descurar, é claro, de sua importância como instrumento de ampliação de acesso ao ensino superior. A propósito, não se tem notícia, até o momento, da efetiva concretização da compensação financeira prevista naquela lei, em face daquele impacto financeiro sobre o orçamento da seguridade social.
Vale lembrar, por oportuno, que os mais gritantes casos de distorções na concessão de renúncias fiscais de receitas da seguridade envolvem justamente entidades educacionais que, prestando reduzida quantidade de serviços gratuitos (muitas vezes a indivíduos de classe média), deixam de contribuir para financiar benefícios e serviços devidos aos verdadeiramente carentes.

7- No que concerne ao tratamento fiscal das entidades de previdência privada, existe algum alicerce constitucional específico?
R:
A partir do raciocínio antes apresentado, infere-se que as entidades de previdência privada não deveriam gozar de nenhuma das imunidades mencionadas, posto que proporcionam benefícios àqueles que, gozando de padrão de vida mais elevado, não se contentam com a cobertura do sistema previdenciário público, não se tratando aí, portanto, de assistência social. Seria de fato ilógico conceber-se uma forma de assistência social justamente para o segmento da sociedade que menos necessita da proteção pública.
Contudo, na interpretação do STF, hoje cristalizada na Súmula 730, entidades de previdência privada, mantidas apenas por contribuições do patrocinador, fariam jus a essa imunidade, posto que forneceriam benefícios gratuitamente a seus beneficiários.
De qualquer forma, independentemente dessa discutida imunidade, todas as entidades de previdência privada gozam atualmente de isenções fiscais estabelecidas em nível infraconstitucional, notadamente no tocante à tributação de seus investimentos e reservas em fase de acumulação, os quais sofrem tributação apenas quando geram benefícios e/ou resgates para os beneficiários

8- Qual o atual panorama das discussões acerca de possível ocorrência de bis in idem e violação ao princípio da capacidade contributiva na tributação sofrida pelas entidades de previdência privada, fechadas ou abertas? E quais os reflexos desse tema para a economia do país?
R:
Com relação aos investimentos em previdência privada, as principais alegações de bis in idem e violação ao princípio da capacidade contributiva decorriam da tributação incidente sobre seus investimentos e reservas na fase de acumulação de capital e novamente quando tais recursos geravam pagamentos de benefícios e resgates aos beneficiários, bem como quando do recolhimento de imposto de renda sobre benefícios financiados por contribuições acumuladas, as quais o beneficiário não pudera abater da base de cálculo do imposto de renda.
Contudo, atualmente, tais problemas restaram praticamente superados pela adoção de um amplo regime de diferimento tributário em favor das entidades de previdência privada em geral, desde o advento da Lei .11.053/2004. De acordo com esse regime, a tributação não mais incide na fase de acumulação dos fundos previdenciários, mas apenas quando do pagamento de benefícios e resgates, com possibilidade ainda de opção por tributação regressiva, em função do tempo de aplicação das reservas pelo beneficiário (ou seja, quanto maior esse tempo, menor a alíquota incidente).
Além disso, a Lei 9.250/95 autoriza a dedução das contribuições vertidas para os respectivos planos por parte do beneficiário, em relação à base de cálculo do imposto de renda pessoa física, tudo limitado a 12% da renda bruta anual do contribuinte. Logo, as discussões restantes abrangem justamente períodos anteriores a esses marcos legislativos.
Embora defenda que as entidades de previdência privada nunca foram beneficiárias de imunidade na CF/88, penso que a opção do legislador infraconstitucional em instituir, neste momento, um regime de diferimento tributário, conforme acima descrito, segue tendência de diversos países desenvolvidos, como forma de incentivar a poupança previdenciária privada, com possíveis reflexos positivos para crescimento econômico do país. Afinal, estatísticas confirmam o desenvolvimento de tal segmento de poupança, justamente quando adotada aquela espécie de tributação (nesse sentido, basta que se confira o exemplo de países como Estados Unidos, Canadá e Reino Unido). Afinal, no complexo mundo globalizado em que vivemos, cabe ao legislador nacional encontrar alternativas que compatibilizem os interesses fiscais do Estado com objetivos extrafiscais que favoreçam o desenvolvimento econômico e social.