Entrevista com o Autor


Dr. Alexandre Rocha Almeida de Moraes
em 15/10/2008

Direito Penal do Inimigo

 

Alexandre Rocha Almeida de Moraes é Promotor de Justiça em São Paulo, ocupando, atualmente, o cargo de Assessor da Procuradoria Geral de Justiça, mestre pela Pontifícia Universidade Católica (2006). É Professor contratado pela FAAT – Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Atibaia (Direito Penal e Direito Processual Penal) e membro do CEAL/APMP - Departamento de Acompanhamento Legislativo e Estudos Institucionais da Associação Paulista do Ministério Público. Autor da obra "Direito Penal do Inimigo - A Terceira Velocidade do Direito Penal".

 

1- Em que consiste o Direito Penal do Inimigo?
R:
O “Direito Penal do inimigo” é rótulo dado por Günhter Jakobs à política criminal pautada pela excessiva antecipação da tutela penal (criminalização de atos preparatórios, adoção de tipos de perigo abstrato etc), pelo uso indiscriminado da pena privativa de liberdade e pela flexibilização de garantias penais e processuais. Essa política criminal pautada por novos métodos de investigação (interceptações telefônicas, infiltração de agentes, interceptação ambiental etc) visa combater indivíduos que, de forma contumaz, se portam como ‘inimigos da sociedade’. Para esses, não bastariam as regras clássicas de responsabilização criminal, mas métodos de enfrentamento de uma periculosidade que não se coaduna com quem aceita o pacto social.


2- No Brasil o Direito Administrativo e o Poder Público gozam de grande descrédito por parte da sociedade. Esse descrédito seria o resultado da descodificação do Direito, da hipertrofia e irracionalidade legislativa?
R:
Primeiramente, é preciso ressaltar que o Direito representa apenas uma das formas de controle social, sendo o Direito Penal a forma mais drástica de se pautar condutas. Quando as outras esferas de controle estão em crise – família, religião, educação e outras formas de políticas públicas, assiste-se, sobretudo no Brasil, a infeliz praxe de se projetar soluções imediatas e irracionais através do Direito Penal. Essa política de “pão, circo e nova lei” serve tanto para a edição irracional de nova lei mais rigorosa (que finge atender à sensação de insegurança da população), quanto para edição de nova lei que tende, de forma assistemática e irrazoável, a anistiar criminosos e fomentar a sensação de impunidade. Assim, é evidente que, além da corrupção e da ausência de uma política criminal efetiva e duradoura (políticas públicas primárias), a longo prazo, a edição de inúmeras leis sem qualquer coerência e proporcionalidade além de impedir a própria vivência do Direito, causa inevitáveis descréditos e decepções.


3- Para o senhor, o que tem fomentado a crescente flexibilização de garantias penais e processuais nos últimos anos no Brasil? Seria o começo do Direito menos garantista ao indivíduo e mais consistente ao Estado?
R:
É inevitável assumirmos que o modelo de Direito Penal clássico e iluminista não mais se adequa às demandas da sociedade moderna. Com o avanço tecnológico, com a comunicação instantânea, com as demandas típicas de um Estado de bem-estar (dentre as quais os interesses difusos e os reclamos dos novos gestores da moral), era inconcebível imaginar-se um Direito perene. Acrescente-se às mudanças, a circunstância de termos uma Constituição Federal que transferiu à criminalidade comum (inclusive organizada), os mesmos direitos imaginados ao preso político e pensados numa época de dor, tortura e ditadura. Assim, nem Estado de terror, nem sociedade aterrorizada – precisamos achar o caminho de um ‘direito penal da sociedade’.


4- É possível o Estado aplicar o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo sem que um aja em prejuízo do outro?
R:
Isso somente será possível, como sempre alertou o próprio Jakobs, se houver clara delimitação da política criminal voltada para a criminalidade comum e para a criminalidade organizada e terrorista. Para tanto, reafirmo: é fundamental se compreender os anseios da sociedade e se pensar um Direito Penal como um todo, de forma codificada e com revisão periódica, na velocidade das mudança sociais.


5- Quais os principais entraves para a plena implantação da teoria de Gunther Jakobs na realidade brasileira?
R:
Ninguém com o mínimo de bom senso pode sequer cogitar a defesa da ‘plena’ implantação da teoria de Jakobs, até mesmo porque ele muito mais denuncia uma política criminal que se constrói em todo o mundo às ocultas, do que propriamente defende.


6- A implantação do Direito Penal do Inimigo pode ser vista como uma porta para um regime de exceção?
R:
Depende da concepção de ‘regime de exceção’. Vivemos um regime de exceção ao nos depararmos com os ataques do PCC em São Paulo em maio de 2006. Vivemos um regime excepcional ao nos depararmos com atentados contra a vida d autoridades constituídas do Estado. O problema é que, comumente, sem a mínima reflexão, bom senso e razoabilidade, as reações para tais ações excepcionais têm sido ‘de exceção’: número indiscriminado de grampos telefônicos, perigosa regulamentação da lei de abate de aeronaves, disciplina por demais ampla das hipóteses de aplicação do regime disciplinar diferenciado etc. Aliás, um brasileiro foi vítima deste tipo de reação irracional por parte de uma das mais treinadas polícias do mundo – a inglesa.
Portanto, nem um Direito Penal simbólico que permita o terror do Estado, nem um Direito fictício em favor do criminoso organizado e do terrorista que, sabidamente, não parece aderir às regras mínimas de um regime de normalidade.


7- Em seu livro o senhor afirma que a discussão acerca da legitimidade de um Direito Penal do Inimigo é mais uma decisão política que jurídica. Isso quer dizer que caso a medida fosse recepcionada politicamente, não encontraria resistência jurídica?
R:
A ponderação de bens e interesses constitucionais pode justificar uma atuação diferenciada do Estado em uma situação excepcional. A proporcionalidade não diz somente respeito à quantidade e qualidade da reprimenda, mas também da suficiência da punição estatal. Portanto, antes de uma decisão de cunho jurídico, é preciso que se entenda que a solução para a questão vem sendo dada pelo tipo de política criminal eleita como prioridade pelos Estados. Logicamente que há instrumentos jurídicos para se coibir o excesso, mas é forçoso reconhecer que não temos, ao menos no Brasil, a cultura de controle de constitucionalidade de leis penais e processuais penais, seja para coibir políticas criminais que afetem direitos e garantias individuais, seja para obstar legislações fabricadas ao completo arrepio da vontade popular. Afinal, o direito é um raio-x da moral e dos valores de um determinado povo.


8- Caso seja exercitada a aplicação do Direito Penal do Inimigo no Estado brasileiro, existem ferramentas previstas para conter eventuais excessos?
R:
Primeiramente, é necessário afirmar que ele já é aplicado no Brasil. Ainda que haja instrumentos jurídicos para se coibir os excessos, a solução é antes política do que jurídica. É preciso fomentar a busca de uma solução de bom senso, em consonância com os reclamos da sociedade moderna: nem laxismo, nem rigorismo penal; ou, como dizia o brilhante HUNGRIA, “nem o Estado exclusivamente para o indivíduo, nem o indivíduo exclusivamente para o Estado, mas ambos para a conquista e promoção do autêntico bem de cada um e de todos, o que em última análise, é a própria finalidade do direito”.