Entrevista com o Autor


Dr. Roberto Altheim
em 20/11/2008

 

Direito de Danos

 

Roberto Altheim é Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Especialista em Contratos Empresariais pela Escola Superior de Advocacia da OAB/PR e Universidade Federal do Paraná; Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná; Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Positivo; Professor de Direito Civil da Faculdade Cenecista de Campo Largo; Procurador do Estado do Paraná.
 

 

1- O que seria em síntese o Direito de Danos?
R:
O texto trata da superação dos pressupostos do dever de indenizar que ainda são constantemente repetidos em textos a respeito do assunto e em decisões judiciais: ato ilícito, dano e nexo de causalidade. Parece-me que os pressupostos do dever de indenizar devem ser repensados, para que melhor se adaptem ao mundo contemporâneo e às novas situações danosas. Para demonstrar esta afirmação o texto “Direito de Danos” passa pela análise da jurisprudência brasileira, em especial algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça a respeito do dever de indenizar.

2- O Sistema de Direito Privado oriundo de alguns códigos, entre eles o Código Civil brasileiro de 1916 situava-se sobre o tripé do racionalismo, individualismo e universalismo e a idéia de responsabilidade civil estava ligada à sanção gerada por um ato reprovável e passivo de punição. A partir dessa perspectiva, quais as diferenças apresentadas pelo Direito Privado nos dias atuais?
R:
Os pilares da Modernidade (racionalismo, individualismo e universalismo) mostram-se inadequados à sociedade contemporânea, em especial à brasileira. O direito privado baseado no Código Civil de 1916 foi construído com base nesses pilares. Tais idéias faziam com que os pressupostos do dever de indenizar fossem muito atrelados à autonomia da vontade do agente causador do dano. Em razão disto “a idéia de responsabilidade civil estava ligada à sanção gerada por um ato reprovável e passível de punição”. Apesar do novo Código Civil, a responsabilidade civil continua sendo analisada pelos Tribunais brasileiros por esses velhos paradigmas, ao menos no que tange aos pressupostos do dever de indenizar.
O direito privado contemporâneo desprendeu-se dos referidos pilares da Modernidade, caminhando em direção à repersonalização e despatrimonialização, bem como a uma postura tópica mais preocupada com os problemas concretos de cada ser humano. Este caminhar do direito privado traz importantes modificações ao “direito de danos”.

3- No que tange a Teoria da Responsabilidade Civil, como se deu a superação da era da segurança? No que resultou essa superação?
R:
Chamo de “mundo da segurança” a impressão tipicamente moderna e presente na idéia de “codificação” de que todo o direito é conhecido e de que todas as pessoas, ao conhecerem o direito, podem prever as conseqüências jurídicas de seus atos. Para a responsabilidade civil típica da Modernidade, este modo de pensar trazia a segurança das pessoas a respeito da possibilidade ou não de surgir obrigação de indenizar em razão dos atos praticados. Em suma, só haveria dever de indenizar se fosse praticada uma conduta contrária à lei, seja na forma de culpa ou de dolo, ou se fosse praticado um ato previsto em lei como ensejador de responsabilidade objetiva, sendo que estas hipóteses legais eram positivadas de forma bem fechada, com textos de conteúdos semânticos bem delimitados.
Este “mundo da segurança” desabou juntamente com o reconhecimento de que os pilares da Modernidade (racionalismo, individualismo e universalismo) não se fazem presentes.
Para o direito privado isto pode ser claramente percebido pelas conseqüências da incidência direta de princípios constitucionais às relações privadas, pela existência de cláusulas gerais, pela promulgação de “microssistemas”, e, enfim, pelo abandono dos conceitos gerais fixados nos grandes “códigos oitocentistas” em favor de um ordenamento jurídico que permite uma maior atenção às características próprias de cada vida humana.
Sendo assim, entendo necessário repensar os pressupostos do dever de indenizar, para que os filtros indenizatórios sejam mais adequados a atual realidade.


4- Como é possível reverter-se uma situação onde é imputado a uma pessoa o dever de indenizar, não tendo esta praticado nenhuma conduta contrária ao ordenamento jurídico, não tendo assim qualquer responsabilidade pelo dano?
R:
A tendência de objetivação da responsabilidade civil é clara. Isto significa que cada vez mais surgem possibilidades de imputação do dever de indenizar mesmo sem a prática de qualquer ato ilícito. Nestas hipóteses haverá a responsabilização sem uma conduta contrária ao ordenamento. O que se afirma é que nestes casos há a “antijuridicidade”, e não a “ilicitude stricto sensu”.
Esta tendência de objetivação decorre da superação da idéia de que a responsabilidade civil estaria sempre ligada à sanção por um ato reprovável e passível de punição, já comentada anteriormente.
Assim, tendo em vista que a contrariedade da conduta em face do ordenamento (culpa ou dolo) há muito deixou de ser o principal filtro das indenizações, a melhor defesa daquele a quem se pretende imputar o dever de indenizar passa aos demais pressupostos da responsabilidade civil, especialmente ao nexo de causalidade e ao dano injusto.
Quanto ao nexo de causalidade, cabe a discussão sobre a ocorrência da caso fortuito, força maior, culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiro para afastar a responsabilização.
Quanto ao dano injusto, cabe a discussão a respeito dos interesses juridicamente tuteláveis envolvidos na situação danosa, para que se indague se o dano não passa de uma fatalidade, de um mero dissabor do dia-a-dia ou até mesmo de um dano justo, no sentido de não ser merecedor de reparação (como, por exemplo, quando há consentimento do ofendido).

5- Como os tribunais têm lidado com situações de dano injusto?
R:
Muito raramente são encontradas discussões judiciais a respeito da injustiça do dano. Os tribunais brasileiros, por ainda fundamentarem as decisões a respeito da responsabilidade civil nos tradicionais pressupostos do dever de indenizar, acabam por não enfrentar diretamente este tema.
Apesar da objetivação da responsabilidade civil (já comentada), as cortes brasileiras, quando entendem que um dano não merece reparação, justificam as decisões de improcedência das ações de indenização nas idéias de culpa e nexo de causalidade.
Entendo necessário que os tribunais passem a tratar mais claramente do tema, justificando claramente nas sentenças o reconhecimento de um dano como “justo” ou “injusto”, “indenizável” ou “não indenizável”, possibilitando, assim, o controle das posições adotadas pelo sistema processual.
Ao que me parece, há um inconsciente enquadramento forçado dos fatos nos velhos pressupostos da responsabilidade civil, em razão da ausência de maior discussão a respeito de novos pressupostos mais adequados à realidade contemporânea.

6- Em que situação a relação de causa e efeito necessária para que surja o dever de indenizar, não mais se dá entre a conduta e o dano, mas sim, entre o nexo de imputação e o dano?
R:
Há várias hipóteses em que a legislação estabelece responsabilidade objetiva a pessoas que não praticaram a conduta geradora do dano. Por exemplo, o artigo 735 do Código Civil determina que a transportadora indenize os danos gerados a passageiros mesmo que os danos sejam decorrentes de conduta de terceiro. De acordo com a tradicional teoria da responsabilidade civil, nesta hipótese haveria interrupção do nexo de causalidade entre a conduta da transportadora e o dano, de forma que ficaria afastada a indenização. Entretanto, se for utilizada uma idéia mais contemporânea a respeito dos filtros indenizatórios, pode-se entender que o nexo de causalidade se dá entre o nexo de imputação e o dano injusto (e não entre a conduta de quem se imputa o dever de indenizar e o dano), pois realmente não há nesta hipótese ligação de causa e efeito entre ato da transportadora e o prejuízo. Contudo, pode-se afirmar que há sim ligação de causa e efeito entre a atividade de transporte oneroso e o dano, ou seja, entre o nexo de imputação adotado (risco empresarial assumido) e o dano.
Outro exemplo: o artigo 933 do Código Civil estabelece que os pais devem pagar os danos causados pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e companhia. Mais uma vez a pessoa chamada a indenizar não terá praticado nenhuma conduta danosa. Ou seja, não há ligação de causa e efeito entre o dano e qualquer ato daquele chamado a indenizar. Mas pode-se defender que há o nexo de causalidade entre o dano e o nexo de imputação aqui adotado, que seria o dever de garantia estabelecido pelo ordenamento jurídico no artigo 932 do Código Civil.

7- Quais seriam os pressupostos contemporâneos do dever de indenizar?
R:
Indico como pressupostos contemporâneos do dever de indenizar: a) a antijuridicidade; b) o nexo de imputação (também chamado de fator de atribuição); c) o dano injusto; e d) o nexo de causalidade entre o nexo de imputação e o dano injusto.

8- Diante do congestionamento de processos que abarrotam os tribunais, como a parte lesionada pode e deve agir no sentido de minimizar os efeitos da lesão provocada, enquanto a reparação não é determinada judicialmente?
R:
Entendo que uma das maiores críticas que se pode fazer à teoria geral da responsabilidade civil é a de que ela permite que quaisquer situações de desgosto do dia-a-dia sejam levadas ao Poder Judiciário para que lá se analise o dever de indenizar. Precisamos primeiramente pensar em solidificar pressupostos mais adequados à sociedade e ao direito contemporâneos. Uma vez bem solidificados estes pressupostos, algumas demandas passam a ser desencorajadas, por terem pouca chance de sucesso. Assim, evitar-se-ia algo que a doutrina vem denominando de proliferação de “demandas frívolas”. Haveria, assim, uma contribuição para a diminuição do congestionamento de processos.
Contudo, uma vez ajuizada a demanda indenizatória, aquele que pretende a compensação ou reparação pecuniária pode procurar o imputado para tentar uma transação, que poderia implicar em outras medidas que não apenas o pagamento em dinheiro, mas a adoção de práticas compensatórias da lesão sofrida, como por exemplo, a retratação pública ou a adoção de medidas que evitem futuros danos semelhantes.
Além disto, em alguns casos há a possibilidade de sanções administrativas, que poderiam ser mais adequadas ao sancionamento do ato danoso.